OS AFETOS PRIMITIVOS NA ÉTICA DE ESPINOSA

Para podermos tratar da teoria de Espinosa sobre os afetos, falaremos antes neste trabalho, resumidamente, de alguns conceitos desse autor que achamos necessários para a compreensão sobre a sua teoria.

O objetivo da Filosofia para Espinosa é a felicidade, a paz de espírito como efeito do conhecimento. Esse conhecer, para ele, se dá sempre através das causas. Assim chegamos ao conceito de Deus (ou Natureza – com maiúscula), como causa primeira de todas as coisas.

Esse Deus não é o padrão judaico-cristão, mas seria um Deus não transcendente, a substância infinita que se mostra em modos ou atributos (atributo seria uma forma de ser que contém a essência da substância, enquanto modo seria um efeito ou modificação da substância), em tudo que existe. Por exemplo, a extensão e o pensamento seriam dois desses modos. Entre todos esses modos, há um princípio de paralelismo. Se um corpo A afeta um corpo B (extensão), por exemplo, há uma idéia desse corpo A afetando a mente de B (pensamento). (Esse paralelismo se estende por todo o pensamento de Espinosa, logo, é válido também em todo este trabalho). Deus é também chamado de “Natureza naturante”, enquanto os infinitos modos são a “Natureza naturada”. Há uma diferença entre essas naturezas, mas não uma separação. Como esse Deus de Espinosa é ilimitado, não podemos dizer que o autor é panteísta, mas sim pananteísta.

Os indivíduos seriam compostos por partes articuladas, em diferentes graus de complexidade. A essência de um indivíduo seria a constância da relação em que essas partes são articuladas. Portanto, cada indivíduo tem algo de constante – sua essência – e algo de mutável – suas partes – que tendem a se transformar através do tempo, pelo contato com o meio ao seu redor. Essa essência, que se esforça para se manter, a partir da qual o indivíduo pode existir (no espaço-tempo), Espinosa chama de Conatus. Além desse esforço de autopreservação, o Conatus é também um esforço de auto-realização e auto-afirmação (potência de agir). Note-se que esses chamados “indivíduos” referem-se a tudo, todas as coisas, em todos os modos de Deus.

O livre-arbítrio seria, então, idéia ilusória, já que estaríamos sempre nos comportando baseados na nossa necessidade intrínseca (essência). A liberdade, para o autor, é a de escolher algo seguindo nosso conatus. Vale notar aqui, que nosso conatus, nossa potência de agir, é o poder de produzir efeitos em atos, de acordo com nossa essência. Com isso, já que não poderíamos fazer de modo diferente qualquer ato, dadas as nossas essências e as condições específicas externas a nós em cada momento. Essa é a base de seu determinismo absoluto ou necessitarismo.

Para passarmos ao estudo dos afetos é necessário explicitarmos os conceitos de idéias e causas adequadas e inadequadas. Idéias inadequadas sobre uma coisa A, seriam aquelas que projetam na coisa A em si, a impressão que o corpo (e/ou a mente) tem ao ser afetado pela coisa A. Por exemplo, a afirmação “O sol é um disco pequeno, a 200 pés de altitude”. Esse tipo de idéias não podem jamais ser comprovadas. São incompletas, parciais, ilusórias. Os outros tipos, as idéias adequadas, são as verdadeiras e necessárias (logo, comprováveis). São as idéias do intelecto. Exemplo: “Uma circunferência é o lugar geométrico em um plano, onde todos os pontos distam igualmente do centro.” Cabe aqui uma diferenciação do conceito de idéia entre Espinosa e Descartes. Para o último, as idéias representam objetos, mas não fazem um juízo sobre os mesmos (se são verdadeiros ou falsos). Esse juízo seria uma soma de idéia e vontade. Para Espinosa, a idéia já é um ato de julgar, e tendemos naturalmente a crer que qualquer idéia é verdadeira.

Quanto às causas adequadas e inadequadas de um dado efeito, as primeiras seriam aquelas que são todas as causas do efeito. As últimas, são causas apenas parciais do dado efeito. Ou seja, não bastam para explicar totalmente o efeito.

Os afetos seriam tipos de afecções que aumentam (alegres) ou diminuem (tristes) o nosso conatus. Se subdividem em ativos e passivos (paixões). Os ativos são sempre alegres, enquanto os passivos podem ser alegres ou tristes. Os afetos ativos ocorrem quando somos causa adequada de um efeito. E os passivos, quando há um efeito em nós de que somos apenas causa parcial, ou inadequada. Para Espinosa, o simples ato de contemplar, ou conhecer um afeto, já nos dá prazer (mesmo os tristes).

Com estes conceitos dados, podemos avançar numa subdivisão do conatus. Espinosa chama de vontade ao conatus quando referido somente à alma. E de apetite, quando referido à alma e ao corpo. Desejo é o apetite de que se têm consciência. Vale destacar que todos estes conceitos (apetite, vontade e desejo) são subdivisões do conatus. A consciência seria a idéia da idéia (duplicação reflexiva), e a idéia da idéia da idéia ad infinitum. Por exemplo: perceber que percebo uma porta. Ou seja: perceber em minha mente a idéia da porta. Isso pode acontecer com idéias adequadas (racionais) ou inadequadas (imaginativas, passivas). Em cada um dos casos, a duplicação das idéias mantém estas suas características (duplicação da idéia racional gera idéia da idéia racional e o mesmo ocorre com a imaginativa).

Podemos ter como exemplo de interpretação imaginativa falsa, a idéia de objetos ou valores éticos bons “em si”. Para Espinosa, não há nada bom ou ruim em si mesmo, mas o afeto que o objeto nos causa é que nos faz sentir bem (alegre, aumentando nosso conatus) ou mal (triste, diminuindo nosso conatus).

Ainda sobre a consciência, é válido distinguir aqui o conceito entre Descartes e Espinosa. Para o último, a consciência é o ponto de partida da Filosofia (“Cogito, ergo sum.” – “Penso, logo existo.”), enquanto que, para o primeiro, não é um conceito primitivo. Para Espinosa, o conhecimento se dá pelo contato com objetos. Esse contato é o que gera idéias e, assim, idéias de idéias, tornando o homem mais “consciente de si, de Deus e das coisas”, que é a definição de sábio para o autor. Vale ressaltar também que Espinosa não separa intelecto de vontade, não reduz todo o lado afetivo humano ao cognitivo nem reduz as paixões a meros juízos falsos.

Quando os afetos nos afetam como parte, são chamados de hilariedade (aumento de conatus) e melancolia (diminuição de conatus). Quando nos afetam como totalidade, são prazer (aumento de conatus) e dor (diminuição de conatus). Espinosa valoriza mais os afetos que nos atingem como uma totalidade. Por isso, em alguns casos, o desprazer indireto pode ser útil ao indivíduo, quando vem a compensar o excesso de prazer de uma parte em relação ao todo.

Os afetos primitivos (ou primários) são três: desejo (conatus), alegria (quando gera aumento do conatus) e tristeza (quando gera diminuição do conatus). Na verdade, alegria e tristeza são dois modos do conatus, assim como extensão e pensamento são dois atributos de Deus para o autor. Os dois afetos derivados fundamentais são: amor (alegria acompanhada da idéia da coisa exterior julgada causa dessa alegria) e ódio (tristeza acompanhada da idéia da coisa exterior julgada causa dessa tristeza).

As paixões tendem a ser obsessivas e alienantes por tendermos a ver o objeto que as causa, como causa única da nossa alegria ou tristeza, segundo Espinosa.

Na parte 3 da sua Ética, a partir da proposição XIV até a LIX, o autor passa a trabalhar mais detalhadamente essas relações entre os afetos, mas seria alongar demais este trabalho se estudar aqui profundamente de cada uma dessas teorias. Segue, então, um breve resumo de quatro delas, apenas:

Proposição XIV – Se duas afecções A e B são sentidas simultaneamente, no futuro, se formos afetados por A, seremos também por B (mesmo que B esteja ausente).

Proposição XV – Pode ocorrer um afeto por acidente (sem conexão lógica). Isto seria uma associação imaginativa, um indivíduo que pode ser causa de simpatia ou antipatia imediata para outro indivíduo sem nenhum motivo lógico, apenas pela associação por contigüidade, por exemplo.

Proposição XVI – Se um corpo A nos afeta habitualmente positivamente ou negativamente, e B é semelhante a A, então amaremos ou odiaremos B apenas por esta semelhança com A.

Proposição XVII – Um indivíduo, por ser composto por várias partes ou por ter algo semelhante a outro que nos causa um afeto contrário, pode nos afetar, ao mesmo tempo, positivamente e negativamente. Essa ambivalência afetiva é o que o autor chama de “flutuação da alma”.


Vale ressaltar aqui a complexidade das relações nesse sistema criado por Espinosa, onde devemos levar em consideração: as partes dos indivíduos variantes com o tempo, as diferentes intensidades dos afetos, a complexidades diferentes dos indivíduos etc.

É interessante notar que, como os afetos dependem sempre, pelo menos em parte, da essência do indivíduo, ele é sempre co-responsável por sua alegria ou tristeza. E mesmo idéias falsas, podem causar esses efeitos reais no indivíduo.

Para sermos mais felizes (ou para aumentarmos nosso conatus), o autor recomenda que tentemos aumentar ao máximo, mas dentro do possível para cada indivíduo, a quantidade de afetos ativos em nossas vidas, pois os mesmos são sempre alegres. Ou mesmo que tentemos compreender melhor cada afeto (e suas causas), mesmo os passivos ou os tristes, pois apenas isto já bastaria para uma maior felicidade.

Bibliografia:

ESPINOSA, B., Ética demonstrada à maneira dos geômetras. São Paulo: Abril Cultural, 1983. (Os Pensadores)

GLEIZER, M. Espinosa e a afetividade humana. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005.

(Fabio Rocha)

4 comentários:

Glauber disse...

Eu sou Glauber,, estudante de Filosofia da faculade Sao Bento da Bahia. achei muito bem produzido o seu artigo e queria citar em um artigo que estou produzindo...

para isso preciso de referencia acerca de seu curriculo...

Obrigado!

Cotidianos disse...

Muito obrigada pelas contribuições, estou estudando Espinosa e às vezes me perco nos moinho filosófico complexo que esse autor desenvolve!

Cotidianos disse...

Obrigada!

Zé Maria disse...

Obrigado pelo texto, me ajudou muito. Fiquei com uma dúvida, essa ordem não está invertida?

"Ainda sobre a consciência, é válido distinguir aqui o conceito entre Descartes e Espinosa. Para o último, a consciência é o ponto de partida da Filosofia (“Cogito, ergo sum.” – “Penso, logo existo.”), enquanto que, para o primeiro, não é um conceito primitivo."

Grande abraço.