AFINAL, O QUE É ARTE?

AFINAL, O QUE É ARTE?


FABIO JOSÉ ALFREDO SANTOS DA ROCHA


RIO DE JANEIRO
Maio/2008



Weitz [1] parte da teoria de Wittgenstein de que a lógica dos conceitos empíricos não permitiria uma definição dos mesmos, devido à inovação ser algo inerente a eles, aplicando-os na arte. Assim, basicamente, definir, de modo fixo, o que é arte seria algo impossível, sendo ela mutável. Mas Arthur C. Danto (filósofo e crítico de arte), não se contenta com essa adaptação e insiste em trabalhar melhor na investigação de uma definição da arte. Esse estudo é que acompanharemos aqui.

Com o surgimento da fotografia no século XIX, a arte como imitação da natureza começa a perder o sentido. É nesta época que surge o impressionismo, na França, que teve como alguns expoentes Monet, Renoir e Manet.

“Os autores impressionistas não mais se preocupavam com os preceitos do Realismo ou da academia. A busca pelos elementos fundamentais de cada arte levou os pintores impressionistas a pesquisar a produção pictórica não mais interessados em temáticas nobres ou no retrato fiel da realidade, mas em ver o quadro como obra em si mesma. A luz e o movimento utilizando pinceladas soltas tornam-se o principal elemento da pintura, sendo que geralmente as telas eram pintadas ao ar livre para que o pintor pudesse capturar melhor as nuances da natureza. [...] Essa orientação viria dar mais tarde origem ao pontilhismo. As cores e tonalidades não devem ser obtidas pela mistura das tintas na paleta do pintor. Pelo contrário, devem ser puras e dissociadas no quadro em pequenas pinceladas. É o observador que, ao admirar a pintura, combina as várias cores, obtendo o resultado final. A mistura deixa, portanto, de ser técnica para se tornar óptica.” [2].

Assim, a pintura acaba sendo decomposta e deixa e ter como alto critério de valor a sua semelhança com a realidade, como era desde a Grécia antiga até o Romantismo.

A arte como espelho da realidade, aliás, é um tema trabalhado por Danto no primeiro capítulo do “A transfiguração do lugar-comum”, ao comparar os pensamentos contrários de Platão e Shakespeare sobre arte como imitação do real. Para Platão, o espelho da arte, seu caráter mimético, estaria no nível mais baixo da escala ontológica:

1º lugar - coisas em-si;
2º lugar - objetos percebidos pelos sentidos;
3º lugar - objetos de arte como pura imitação de (2).

Para Danto, Platão parece se incomodar com a utilidade de uma arte preocupada somente com uma melhor imitação da realidade já na Grécia de seu tempo: “Sócrates talvez estivesse sugerindo que a mimese perfeita era afinal o grande objetivo dos artistas [...] então, se era só isso que se almejava – fazer uma cópia exata –, seria bem mais fácil obtê-la não pelos métodos usuais de educação artística, mas pelo simples estratagema de colocar um espelho voltado pra o mundo [...]” [3] Ou seja, se o que se busca na arte é uma imitação cada vez mais exata do real, por que não usar logo um espelho voltado para o mundo ao invés de criar um objeto de arte?

Trazendo a discussão para a realidade atual, podemos nos questionar sobre as formas de arte padronizadas como as novelas (se é que podemos chamá-las de arte), muito preocupadas com a identificação com o público e seus índices de audiência, o que acarreta uma produção com cada vez menos inovações e riscos e cada vez mais lugares-comuns, simplificações e estereótipos. Será que podemos dizer que isso causa um efeito de “educação” do público contra mudanças e outras perspectivas de se enxergar a realidade em suas próprias vidas? Talvez sim, já que o processo de espelhamento parece mútuo nesse caso: a cultura do espectador se forma (também) com o que ele vê na novela e as novelas são feitas cada vez mais preocupadas com o número de espectadores que as vêem (em algumas, se chega a mudar a história se os espectadores não estiverem gostando...). Um ciclo infinito de estagnação não criativa, onde a preocupação extremada com a audiência (e o lucro econômico das emissoras de TV) acaba por manter a própria realidade dentro dos mesmos padrões. O cinema estadunidense, com seus recordes de bilheteria, com foco demasiadamente voltado para a ação, uma trama básica, algum romance socialmente aceito e um "Happy End" para encerrar, talvez esteja no mesmo caso. Nietzsche, já no seu primeiro livro, "O Nascimento da Tragédia", diz: "De onde viria ao artista a obrigação de acomodar-se a um poder cuja força reside apenas no número?" (aforismo 11). E esse efeito também pode ser pensado no jornalismo atual e no poder de sua influência na manutenção dos nossos padrões de comportamento, mas aí já estaríamos totalmente fora da questão do que é arte...

Voltando ao tema deste trabalho, a parte positiva da arte como espelho parece ter escapado a Platão: qual instrumento é melhor para percebermos a nós mesmos? Shakespeare, em seu Hamlet, é utilizado por Danto como o pólo oposto dessa visão negativa de Platão. A identificação com uma obra de arte pode trazer autoconhecimento. Quantos poemas, por exemplo, nos surpreendem por conseguir colocar em palavras um pensamento, sentimento ou sensação que sempre tivemos, mas não conseguimos entender ou expressar tão bem como em seus versos? Quando ocorre esse fenômeno estético (que diz respeito não à obra de arte, mas à sensibilidade da pessoa frente à obra) de identificação, não passamos a nos conhecer melhor? Além desse aspecto, o espelho pode nos fazer ver a nós mesmos também como objetos do mundo, abre a possibilidade de sermos percebidos, e não apenas de perceber. Assim é que o rei assassino (Cláudio) se vê na peça montada por Hamlet. Mas pode ocorrer também uma identificação pelo oposto. Citando o texto de Danto: “Qualquer pessoa pode ser ver refletida numa obra de arte e descobrir algo sobre si mesma [...] Uma mulher libertina poderia ver sua degradação numa pintura da Virgem Maria.” [4]

Assim, a imitação do real na arte pode ser vista em seus aspectos positivos e negativos, mas não parece ser critério para classificar o que seria ou não arte.

Após o impressionismo, o Cubismo realizou o rompimento definitivo com o espaço do renascimento, “a decomposição da figura colocou em evidência o plano, como a verdade do espaço plástico moderno.” [5] A partir desse ponto, podemos falar de outra importante ruptura com a forma mais usual de se fazer arte, que acaba por dar mais material para Danto tentar desenvolver sua definição de arte. Trata-se da arte conceitual, que teve como precursor Marcel Duchamp. Em 1917, com o pseudônimo de “R. Mutt”, Duchamp enviou para o Salão da Associação de Artistas Independentes um urinol de louça, usado em sanitários masculinos, com o título de “Fonte”. Não era a primeira apropriação e deslocamento de objetos pré-fabricados para o meio de arte: em 1913, Duchamp já usara um banco de cozinha onde parafusou, no assento, uma roda de bicicleta. Mas o urinol foi o primeiro objeto deste tipo enviado para uma exposição. Com isso, Duchamp criou a arte conceitual, fazendo o mundo se perguntar sobre o que é arte.

Nos anos 50, quando os Estados Unidos passam a ser o centro cultural ocidental no lugar da França, o estadunidense Andy Warhol inaugura a pop art. No seu projeto Brillo Box, ele expõe um objeto como sendo de arte, inteiramente igual a uma caixa de sabão em pó que poderia ser comprada em qualquer supermercado. Com isso, podemos tratar de dois fenômenos de que fala Danto: o fim da arte e o princípio dos indiscerníveis.

Sobre o fim da arte, diz o próprio Danto em entrevista: “... meu pensamento é que o fim da arte consiste no surgimento na consciência da verdadeira natureza filosófica da arte” [6]. E essa natureza filosófica da arte só pode ser notada a partir da arte conceitual, com o fim dos critérios meramente visuais para discernir o que é ou o que não é arte (no caso da Brillo Box, por exemplo, não haveria diferença visual na caixa em um supermercado da caixa em exposição). Assim, a análise de uma obra de arte, para Danto, deve levar em conta algo externo à obra e, talvez, mais importante que ela própria: sua relação com o mundo (contexto cultural, histórico, social etc.). Além disso, a obra traz consigo significados incorporados dentro do mundo da própria arte (que leva em conta a teoria e a história da arte), indo além do seu mero conteúdo e meio de apresentação.

O princípio dos indiscerníveis de Leibniz diz que se duas coisas são idênticas, nenhuma característica de uma não existe na outra. Assim, se considerarmos que na identidade de um sabão em pó comum com a Brillo Box, há significados incorporados à Brillo Box que não acharemos como características no sabão em pó, eles são apenas aparentemente idênticos. As obras de arte conceituais sempre se diferirão dos meros objetos justamente por trazerem consigo algo a mais que os objetos: o conceito. Jorge Luis Borges trata deste tema em seu texto “Pierre Menard, autor do Quixote”, onde um escritor tenta e consegue reescrever de forma exatamente idêntica (com as mesmas palavras) o Dom Quixote de Cervantes, mas as diferentes condições de suas épocas distintas ao escrever acabam por mostrar que não são duas obras idênticas, mas apenas aparentemente idênticas.

Há, assim, uma diferença ontológica entre obra de arte e coisa (objeto físico), mais perceptível com as inovações da arte conceitual. As coisas simplesmente são, enquanto as obras de arte sempre trazem consigo um conteúdo simbólico, remetendo a algo fora delas mesmas. Para Danto, a obra de arte é sempre interpretada e tem conteúdo (mesmo que o conteúdo seja a sua presença na história da arte). Mas esse conteúdo interpretável da arte não necessariamente deve ser uma comparação com o real (como era o costume antes do impressionismo) ou uma tentativa de adivinhar a intenção expressiva do autor (como muito se tenta fazer até hoje em dia).

Percebemos, assim, a complexidade e dificuldade em se estabelecer uma definição definitiva e completa da arte. Mas Danto, se utilizando da própria história da arte, parece ter feito um belo trabalho filosófico. É interessante notar a aproximação da filosofia com a arte, e o poder de transformação pessoal que ambas possuem. O próprio Danto parou de produzir arte para se voltar apenas para a Filosofia, impactado pela Brillo Box, como conta nessa entrevista: “Eu parei de fazer arte por volta de 1964, quando vi a exposição de Warhol. Foi uma espécie de descoberta sobre mim mesmo ocorrida em algum momento de 1962. Eu passei a achar mais interessante dedicar-me à filosofia do que fazer arte. Eu estava trabalhando em uma gravura quando esse pensamento me ocorreu, e me lembro de dizer a mim mesmo: “se essa é a maneira como você se sente, então é melhor parar”. Assim, na verdade, eu parei e desmanchei meu estúdio e, desde aquele dia, não desenhei sequer uma linha.”. [7]


--- Notas de rodapé ---

1 - Weitz, M. 1957. O papel da teoria em estética. The Journal of Aesthetics and Art Criticism, 15.I, pp. 27-35.

2 - Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Impressionismo

3 - DANTO, A. A transfiguração do lugar-comum – uma filosofia da arte. Tradução de Vera Pereira. São Paulo: Cosacnaify, 2006. p. 43

4 - DANTO, A. A transfiguração do lugar-comum – uma filosofia da arte. Tradução de Vera Pereira. São Paulo: Cosacnaify, 2006. p. 46

5 - Fonte: http://www.vivercidades.org.br/publique222/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?infoid=1253&sid=22&tpl=printerview


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

DANTO, A. A transfiguração do lugar-comum – uma filosofia da arte. Tradução de Vera Pereira. São Paulo: Cosacnaify, 2006.
_________. O mundo da arte. Arte e Filosofia. Ouro Preto: Universidade Federal de Ouro Preto / Tessitura, 2006.


(Fabio Rocha)

NIETZSCHE E A NECESSIDADE DE IDOLATRIA HUMANA

“Quanto a mim, os autores de que gosto, eu os utilizo. O único sinal de reconhecimento que se pode ter com um pensamento como o pensamento de Nietzsche é precisamente utilizá-lo, deformá-lo, fazê-lo ranger, gritar. Que os comentadores digam se é ou não fiel, isto não tem o menor interesse.”

FOUCAULT, M. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1986.


Do mesmo modo que o “homem de ação” nietzschiano, criador do grandioso no momento presente, pegou a tocha dos grandes homens do passado, sua obra será a tocha a encorajar os homens do futuro. Pois se foi possível a grandeza no passado, “será, algum dia possível novamente”. Aliás, não seria essa também a parte boa da história da Filosofia?

Esta fé em si mesmo como ativo, como parte do mundo, capaz de criticar, analisar e transformar o presente, é essencial no momento em que vivemos, egoístas sem visão do todo, treinados para sermos passivos, uniformes e não criadores desde a pré-escola, passando pelo dogmatismo das igrejas e culminando com trabalhos sem beleza, prazer nem criatividade, que têm como fim último o salário para a sobrevivência. Aceitamos tudo que nos é dado com um conformismo crescente e uma alienação protuberante!
Hoje, a globalização e o neoliberalismo são ótimos exemplos de processos internacionais que facilmente convenceram a quase totalidade da raça humana de sua irreversibilidade. Sem falar na idolatria do cientificismo, de que Nietzsche fala na passagem:

“Defendo-me contra toda tartufaria de cientificidade:
1 – em relação à exposição, quando ela não corresponde à gênese dos pensamentos
2 – nas reivindicações de métodos, que talvez não sejam absolutamente possíveis durante um determinado tempo da ciência
3 – nas reivindicações de objetividade, de fria ausência de personalidade, nas quais, como em todas as valorações, contamos com duas palavras sobre nós e nossas vivências interiores” 1


No aforismo 125 da Gaia Ciência, talvez fique explicada melhor essa necessidade de idolatria que o homem traz consigo ainda hoje, considerando-se que vivemos a época da “morte de Deus”. Esse aforismo trata do homem “toll”, que pode ser traduzido como homem louco ou desvairado. Ele está, em plena manhã, procurando Deus com uma lanterna: clara paródia à cena de “Diógenes, o cínico”, que buscava, também com uma lanterna no meio da luz do dia, um homem no meio dos homens (um homem com base no modelo grego, um herói, um homem mais próximo dos Deuses). Já na paródia nietzschiana, o homem busca a Deus. O local dessa busca é a agora, o coração da cidade, onde costumavam se reunir filósofos na Grécia, palco das grandes decisões sobre os destinos da cidade e do mundo. E ali se encontravam “muitos daqueles que não criam em Deus”. Ou seja, na paródia de Nietzsche, a busca por Deus é feita justamente no espaço dos filósofos, sendo muitos deles ateus. Mas o ateu, como negador de Deus, permaneceu preso a Deus para Nietzsche, do mesmo modo que o escravo liberto vive da medida da prisão onde estava antes de ser livre. A negação precisa sempre, primeiramente, que haja um Deus, para poder negá-lo. A partir daí, Nietzsche começa a falar da morte de Deus, que seria uma reintegração do plano supra-sensível no plano sensível, e não uma negação do supra-sensível, como no ateísmo. O assassinato de Deus seria uma supressão da dicotomia entre supra-sensível (Deus. Ser, imperecibilidade etc.) e sensível (sensação, devir, aparência, perecibilidade, composição etc.). A idéia de um Deus assassinável mostra-nos um pensamento já fora da concepção cristã de Deus criador do todo a partir do nada. Assim sendo, para Nietzsche, teria que haver uma origem ontologicamente anterior a Deus. Seria a vontade de poder.2 Assim, o Deus assassinável teria que ter sido também criado. A idéia de Deus seria humana, criada por um certo tipo de homem que, não suportando o devir, divide e separa o plano supra-sensível do plano sensível (metafísica cristã) e passa a tentar achar um acesso (impossível) ao supra-sensível. O sensível, o devir, a sensação, o corpo são desvalorizados nesse esquema e o supra-sensível acaba por se tornar, no cristianismo, acessível para a alma como paraíso, depois da morte do corpo, do mesmo modo que qualquer pensamento metafísico. Esse esquema apresenta desde seu início uma incapacidade de trazer consigo, sem tentar excluir, o plano sensível. A conseqüência natural disso, desse Deus assim criado, é a morte de Deus, como esgotamento do pensamento metafísico. Isso porque, para Nietzsche, a vida incessantemente suprime perspectivas separadas imóveis, trazendo-as para um combate automático entre si. A morte de Deus é, então, o fim da dicotomia, a integração entre os planos, reduzindo a totalidade a esse lugar, esse aqui e agora. É a partir do aqui que Nietzsche propõe o seu pensar. Mas a experiência da morte de Deus que vivemos também é aterrorizante: quando o homem louco do fragmento afirma que “nós o matamos”, usa de elementos poéticos para mostrar esse terror. “Beber o mar” remete-nos ao vazio da experiência quando o supra-sensível se dissolve: o que é a vida se não há nada além dela? Nenhum paraíso para a alma ou metafísica que tudo abarque e explique... “Apagar o horizonte” é a supressão de qualquer limite e de qualquer meta fixa. “Desatar a terra do sol” é a perda da visibilidade que a luz do sol proporciona, trazendo total indistinção. Este é o terror da queda desorientada e cega que a morte de Deus proporciona. Um devir incessante, absolutizado. Este terror lembra um pouco o terror dionisíaco da existência de outra obra de Nietzsche, “O nascimento da tragédia”, apesar das diferenças consideráveis entre as duas obras. Nela Nietzsche trabalha com uma justificação estética do existir, onde o Apolíneo redime o Dionisíaco e a vida faz sentido como obra de arte. Schopenhauer, aliás, também considera a arte (a contemplação estética) como um modo de se escapar da dor de se existir, condicionado ao will to life (o único outro modo, para ele, seria a negação de todo querer de algumas das filosofias budistas e bramanistas). Mas, voltando ao fragmento 125 da Gaia Ciência, após afirmar que nós próprios assassinamos Deus (o que não poderia ser diferente, aliás, já que nós os criamos ao dividir e separar os dois planos por não suportar o devir), Nietzsche diz: “O mais forte e mais sagrado que o mundo até então possuíra sangrou inteiro sob nossos punhais”. Ele mostra, assim, a força do pensamento metafísico, e passa a tratar da dificuldade natural nossa em aceitar que o matamos. Ele fala de limpar a mão do sangue de Deus com jogos sagrados, mostrando a necessidade humana de re-divinizar algo, para poder adorá-lo. A reconquista do sagrado para o profano. Fala também de “festejos de expiação”, o que nos lembra os festejos dionisíacos (também tratados no Nascimento da Tragédia), onde a desordem, a dor e a absolutização são superados com a integração com o apolíneo. Expiação indica também que ainda temos culpa. E, se há culpa, ainda há dificuldade em aceitar a morte de Deus. Sobre isso, Nietzsche complementa: “A grandeza desse ato não é demasiado grande para nós? Não deveríamos nós mesmos nos tornar deuses, para ao menos parecer dignos dele?” O que seria esse tornar-se Deus? No aforismo 143, também da Gaia Ciência, em que elogia o politeísmo, podemos encontrar algumas respostas. Não parece ser uma idolatria de si mesmo ou uma vingança, mas sim ter (e suportar ter) um ideal próprio, leis e direitos próprios, sem ter que adorar ou seguir algo externo. A base para essa soberania do indivíduo foi o politeísmo, segundo Nietzsche, pois a pluralidade de deuses trazia uma pluralidade de normas enquanto o monoteísmo traz consigo um só padrão de normalidade estagnada. O aforismo 125 termina com o homem louco com a lanterna na praça procurando Deus percebendo que chegou “cedo demais”. É como se Nietzsche percebesse que, mesmo tendo o homem efetivamente matado Deus, ele ainda não suporta não ter o que adorar. Ainda precisa das igrejas como “mausoléus e túmulos de Deus”.

Outro aspecto histórico a ser pensado como uma das possíveis causas do que vivemos na contemporaneidade, é o que Georg Simmel, enfoca em seu “O Fenômeno Urbano”: a passagem da vida no campo para as grandes metrópoles criou um modo de vida com tantos estímulos e com um ritmo de vida tão acelerado que o metropolitano, como defesa, tende a reagir menos emocionalmente e mais com a inteligência ou a quase não reagir (que ele chama de atitude blasé). Esse cenário de passividade, frieza e distância, quando comparamos com o modo de vida no campo, viria junto com a presença massificante do dinheiro, como medida de todas as coisas. Tudo perde o encanto, a “cor”, o caráter único, para se tornar um preço, para Simmel. Até mesmo os relacionamentos pessoais são afetados por esta lógica monetária.

Tudo isto lembra a passagem incrivelmente atual de Nietzsche:

“[...] Enquadrar-se, viver como vive o ‘homem comum’, achar correto e bom o que ele acha correto: isso é a submissão ao instinto de rebanho. Há que se levar sua coragem e o seu rigor longe o bastante para sentir como uma vergonha tal submissão. [...]” 3


--- Notas de Rodapé ---

1 NIETZSCHE, F. Vontade de Poder, aforismo 424.

2 A vontade de poder não seria algo transcendente ou imanente, mas o que compõe a realidade. É o resultado do embate entre perspectivas, que nasce a cada instante e onde o devir traz novos elementos que podem ser incorporados ou não (nesse último caso, enfraquecendo a vontade de poder). Deus era, assim, uma perspectiva unificadora, sintetizadora, pois permitia a percepção da existência como um todo. Porém, nunca pode absorver o devir, o que se mostrou na cisão supra-sensível / sensível. A metafísica produziu, assim, essa dicotomia, valorizando o supra-sensível e utilizando-o como medida para se pensar o sensível (vontade de tornar pensável todo ente, de reduzir a totalidade à pensabilidade). O colapso desse sistema por si mesmo seria a morte de Deus. A vontade de poder também seria uma perspectiva, porém mais forte, por conseguir integrar e colocar todas as outras perspectivas sob seu domínio.

3 NIETZSCHE, F. A Vontade de Poder. Aforismo 458.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

ARISTÓTELES. Ética a Nicômano. Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1973.
BACHELARD, G. O ar e os sonhos. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
NIETZSCHE, F. A gaia ciência. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
_____________. Assim falou zaratustra. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006.
_____________. Crepúsculo dos ídolos. São Paulo: Hemus Editora, 1984.
_____________. Humano, demasiado humano. São Paulo: Rideel, 2004.
_____________. Nietzsche. Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1983.
_____________. O livro do filósofo. São Paulo: Centauro, 2004.
_____________. O nascimento da tragédia ou Helenismo e pessimismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.
_____________. Segunda consideração intempestiva. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2003.
PLATÃO. A República. Trad. Maria Helena da Rocha Pereira. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1983.
SCHOPENHAUER, A. O mundo como vontade e representação. São Paulo: UNESP, 2005.



(Fabio Rocha)

A FILOSOFIA MEDIEVAL E A MORAL CRISTÃ

"O homem correto age pela lei interna, e não por mandamentos externos. Bebe as águas da Fonte, e não dos canais." – Lao Tse (Aforismos e trechos do Tao Te King)


Na Idade Média, o pensamento filosófico se tornou dependente da teologia. É nessa época que o Cristianismo se torna a religião oficial do império Romano e começa a se buscar fundamentos filosóficos para essa religião na Grécia Antiga.

Da Filosofia imanente do Estoicismo, de sua lei ética que tem como base a busca da felicidade, de sua negação da metafísica e de qualquer possibilidade de transcendência, os medievais extraem o conceito de NATUREZA como lei eterna, transformando-a em DEUS, criador de tudo. É nessa época que nasce também o conceito de pessoa, retirado do Evangelho.

Os neo-platônicos afirmavam que “Tudo emana do uno e tudo retorna ao uno.” (Plotino), o que pode ser interpretado como uma visão de toda a realidade como divina. Os cristãos não podem aceitar essa teoria, pois o mal seria também divino, e a idéia da criação divina cristã a partir do nada também seria divergente. Porém o modelo neo-platônico de Uno (Logos, fonte de emanação) / Inteligência (Nous) / Alma do Mundo (Psyché) formando um mundo superior, eterno e originário, separado do nosso mundo “Sub-Lunar” (humano, animal, vegetal, mineral), regido pelo tempo cronológico, pela finitude, imperfeição e composição de elementos, servirá de base para o Cristianismo.

Santo Agostinho, como os neo-platônicos, é pré-medieval. Ele é o fundador filosófico do cristianismo com arcabouço platônico. Sua ética terá como base o amor. Tudo poderia ser feito se tivesse como base o amor. A partir daqui é que pretendo me aprofundar na lei e moralidade cristã, com a intenção de destacar como a filosofia cristã, que teve como base a filosofia não-normativa grega (Platão, Aristóteles etc.) e seus primeiros passos morais com a liberdade total do amor em Santo Agostinho se tornou o que temos hoje.

Os gregos ligavam o bem ao belo, à justa medida. Uma ação nobre, considerada boa, bela e justa, poderia ser matar um inimigo em batalha, por exemplo. Nisso consistia uma moral não-normativa: cada ação não teria nela mesma algo de bom ou ruim, dependendo sempre da situação. Não havia uma norma geral, como no Cristianismo há o “Não matarás”. Mas tentemos analisar essa mudança radical desde suas origens.

Os moralistas cristãos procuraram primeiramente vincular o valor moral ao ato voluntário, que seria sua base. Reuniram os conceitos de beleza e honra numa noção mais abrangente, a de bem. Vincularam o bem a um princípio transcendente – a alma, que ganha importância em relação à pura virtude 1. Assim, a virtude nela mesma não é mais o bem supremo que era para os gregos, tendo importância agora apenas por conduzir o homem para Deus.

A partir daqui, podemos analisar melhor o surgimento da noção de pecado, que seria, antes de mais nada, um ato vicioso. E o vício é o oposto da virtude. Para Aristóteles, a virtude é um hábito, uma disposição adquirida e duradoura, que permite àquele que a possui agir em conformidade com a sua própria natureza. Assim, o agir moralmente bem teve como base helênica o agir espontaneamente conforme sua própria natureza. O pecado é, então, um ato contrário à natureza de quem o comete, é mau, é o resultado de um vício (contrário da virtude como perfeição). Assim, a base Aristotélica é mantida por São Tomás de Aquino.

Mas o que seria a natureza? Sendo a razão o que confere a nossa natureza seu caráter humano, a virtude e o bem moral que se harmonizem com nossa natureza devem se harmonizar, necessariamente, com nossa razão. Assim, o mal moral, o pecado e o vício passam a poder ser concebidos como falta de racionalidade no ato ou no costume. Tal como formulou Cícero, em sua definição de moralidade: “O costume de agir de acordo com o que querem a razão e a natureza”. 2

Essa definição parece insuficiente para um cristão, já que não fala de Deus nem das relações entre vontade humana e divina. Por isso, padres e teólogos da Idade Média usavam frequentemente definições mais “cristãs”, como a de Santo Agostinho: “Pecar é falar, agir ou desejar contra a lei eterna.” 3 Estando a lei divina acima da natureza, definir o pecado em oposição à lei divina parece fazer mais sentido realmente para um cristão. A razão seria obra de Deus e a infração das prescrições da razão seria como a infração das prescrições divinas.

O pecado é para um filósofo uma desobediência à razão, enquanto é para um teólogo uma desobediência a Deus. Mas na Idade Média, essas duas instâncias se confundem. Parece-me ser justamente nesse ponto que começa a nascer uma moral normativa, diferente da grega. Pois a razão humana, para poder servir de padrão moral na prática da vida cristã, precisa ser “informada” pela lei divina.

Para Aristóteles, o homem mau é apenas um ignorante. Todo mal nasceria de um erro de juízo. O bem, ao contrário, se liga a sucesso, a bem fazer, a fazer de modo belo e consciente. A virtude, esse bem fazer, é a condição de se levar uma vida feliz. A moral cabe ao homem: Deus não está interessado nela.

Já no platonismo, há mais semelhança com o cristianismo, pois existe uma ordem divina que domina a ordem da moralidade e a define: Saturno, constatando a incapacidade humana de governar com a autoridade conveniente, teria submetido as cidades a inteligências mais divinas que as nossas, criando os Daimons, que seriam guias divinos que carregamos conosco, a parte imortal do nosso ser. Mas é uma semelhança tênue, pois o universo de Platão está inteiramente impregnado de inteligibilidade. Há vários Deuses organizadores do todo, mas nenhum deles foi o seu criador, que poderia guardar consigo os mistérios e ininteligibilidade do mundo.

Santo Agostinho escreveu que “A lei eterna é a razão divina, o a vontade de Deus, ordenando conservar a ordem natural e proibindo perturbá-la.” Mas se as idéias de Deus são Deus, a lei divina, por se identificar à razão de Deus, também seria idêntica a Deus, “cuja razão governa e move todas as coisas como ela as criou” 4. Aqui nota-se uma das grandes diferenças entre o cristianismo e o platonismo: a lei é o Deus criador no cristianismo, que move e dirige para seu fim todas as coisas criadas.

Assim, o pecado seria ir diretamente contra Deus: opondo a vontade Divina à revolta de uma vontade humana. O pecado faz do homem um adversário de Deus e um rebelde. Muitas vezes, sua causa é a ignorância ou a fraqueza. Mas quando ele é a negação de Deus com conhecimento de causa é bem mais grave, pois assim fazendo o homem se exclui da glória a que era destinado. Deus permanece na perfeição da sua beatitude, mas o homem perde a dele, pois é ela o efeito de Deus a que o pecador “se opõe e destrói pela revolta de sua vontade” 5.

Ver essa lei diretamente, então, seria como ver Deus. Algo impossível para o ser humano na concepção cristã. A lei se mostraria como uma “irradiação de luz divina” 6 em nossos corações e consciências. Mas eis aí a questão: os homens podem se recusar a perceber seus corações e consciências, como foi o caso do povo de Israel, onde o próprio Deus teve que revelar por escrito suas leis nos 10 mandamentos. Penso que esse caso específico abriu caminho para a absurda normatização cristã da moral que se seguiu a Santo Agostinho, contrária às próprias bases da teologia cristã. Seríamos nós um povo cada vez mais distante de nossos corações? Ou a necessidade de controle e manutenção do poder por parte das Igrejas cresceu tanto que suas próprias bases filosóficas foram postas de lado?



REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

GILSON, Étienne. O espírito da filosofia medieval. Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2006.



--- Notas de Rodapé ---

1 São Tomás de Aquino, Sum. Theol., IIa-IIae, 145, 1, ad 2m.
2 Cícero, De inventhione retorica. II, 53.
3 Santo Agostinho, Cont. Faustum Manich., XXII, 27, Patr. Lat. T.42, col. 418.
4 Santo Agostinho, De civ. Dei, IX, 22, Patr. Lat., t. 41, col. 274.
5 São Boaventura, In Il Sent., 35, 1, 3, Resp., ed. Quarascchi, t. II, p. 827.
6 São Tomás de Aquino, Sum. Theol., Ia-IIae, 93, 2, Resp.



(Fabio Rocha)

A REFUTAÇÃO DA TESE DE QUE SENSAÇÃO É CONHECIMENTO NO TEETETO DE PLATÃO

Podemos dividir em 4 partes a refutação da tese de Protágoras de que sensação é conhecimento no texto (151d a 186e): auto-refutação (160e a 164e / 170a a 171d), argumento do futuro (177c a 179c), argumento da linguagem (179c a 183c) e refutação final (184b a 186e).


1. Auto-Refutação

Podemos considerar como um início de auto-refutação da tese o argumento de Sócrates de que se a verdade para cada indivíduo é o que ele alcança pela sensação, não pode ninguém além dele mesmo dizer que esta opinião pessoal é falsa. Asssim, ninguém pode ser considerado sábio ou não sábio em qualquer aspecto. Logo, não faria sentido, por exemplo, pagar para assistir às aulas do próprio Protágoras, sendo cada homem a medida de sua própria sabedoria.
A partir de 163d, Platão explora a questão tendo em vista o passado e as lembranças: se conhecimento é idêntico a sensação, ao perdermos a sensação de algo que já passou, teríamos que perder o conhecimento também, o que, obviamente, não acontece. Por exemplo: se fecharmos os olhos não perdemos imediatamente o conhecimento do que vimos no passado, o que mostra que sensação não pode ser considerada como algo idêntico a conhecimento.
Após uma defesa de Protágoras, a auto-refutação aparece em 170a, onde Sócrates afirma que a maioria das pessoas não acredita que o homem é a medida de todas as coisas, ou seja, que sensação é conhecimento. Isso pode ser percebido no fato de que a maioria dos homens prefere médicos a velejadores para tratar de suas feridas, por exemplo, mostrando que “os homens estão convencidos de haver entre eles sábios e ignorantes”. Assim sendo, seguindo a própria teoria de Protágoras, sendo a opinião de cada homem a verdade e a maioria dos homens não acreditando em seu princípio de que cada homem é a medida de sua própria sabedoria, “há mais razões para seu princípio não existir do que para existir”.
Mesmo que esqueçamos a questão da maioria, se apenas um homem tiver opinião contrária a de Protágoras, a tese se auto-refuta, pois diz que toda opinião seria conhecimento verdadeiro, inclusive aquela que nega a tese.
Cabe aqui uma visão mais crítica sobre o que pode ser uma redução de Protágoras a algo caricatural por parte de Platão, como nos parece ser feito mais tarde nesse mesmo texto com Heráclito: Será que podemos dizer que a frase “O homem é a medida de todas as coisas.” traz em si o pensamento de que o homem traz APENAS em si mesmo o critério decisivo de tudo? Indo além: será esta frase exatamente igual a “Conhecimento é percepção sensível.” e a “Todo conhecimento é percepção sensível.” e a “Todo conhecimento verdadeiro é percepção sensível.”? Deixo a questão em aberto neste trabalho, pois precisaríamos estudar diretamente os textos de Protágoras para tentar respondê-la melhor. Mas é perceptível a tendência neste texto de Platão (assim como na história da Filosofia) de reduzir pensadores anteriores a estereótipos deles mesmos, na busca de melhores argumentações para seus próprios pensamentos ou uma maior facilidade de se contar a história da Filosofia. O próprio Platão sofreu e sofre este mesmo processo, resumido como o grande separador do mundo sensível do mundo das idéias, ou ao ter seus mitos lidos literalmente, como se fossem sua percepção de realidade (apesar de todas as passagens em que o próprio autor afirma o oposto).


2. Argumento do futuro

Aqui Sócrates inicia falando da promulgação de leis de uma cidade qualquer, que deveriam ter como finalidade o bem comum no futuro. No entanto, há casos de cidades que erram, não alcançando esse bem no futuro, contrariando o pensamento de Protágoras de que não há homens mais sábios do que outros.
Ainda mais: se seguirmos a tese de Protágoras, ainda podemos pensar que no presente e no passado, a sensação pode realmente ser algo totalmente individual ou uma “verdade própria”, mas se pensarmos em problemas envolvendo o futuro como o da promulgação das leis de uma cidade visando algo melhor no futuro, fica mais difícil manter a interpretação de Protágoras. O exemplo e argumento do próprio Sócrates: “[...] nos preparativos de um banquete, a opinião do convidado desconhecedor da arte culinária valerá menos que a do cozinheiro, em matéria do tempero das iguarias.” Ou seja, para o resultado efetivo futuro do banquete, vale mais a opinião de um homem do que de outro.
Mas, novamente defendendo Protágoras, e aproveitando o mesmo exemplo,esta tese de Sócrates só me parece poder ser plenamente aceita, se considerarmos que há um critério universal, único, correto, fixo e padrão de apreciação de banquetes. No caso da cidade, se considerarmos que há um critério universal de bem comum. No caso do médico, se considerarmos que há um critério universal de saúde. E, particularmente, acho difícil identificar quaisquer desses critérios universais se levarmos em conta, por exemplo, a imensa variação de comportamentos e gostos humanos ao longo da história ou até mesmo em diferentes partes do planeta numa mesma época.
O ponto fundamental deste argumento consiste em mostrar que não se pode sustentar que qualquer opinião sobre eventos futuros é verdadeira, pois os eventos ainda não aconteceram de tal ou qual modo.


3. Argumento da linguagem

A partir de 179c, começa a crítica a Heráclito e seus sectários, como apologetas do devir. Aqui analisarei mais a fundo a questão do devir e do mobilismo absoluto heraclítico, com base nos fragmentos de Heráclito a que temos acesso hoje.
Fragmento 12: "Para os que entram nos mesmos rios, afluem sempre outras águas; mas do úmido exalam também os vapores."
Fragmento 49a: "No mesmo rio entramos e não entramos; somos e não somos."
Aparentemente, foi desses dois fragmentos que a tradição estabeleceu um estereótipo de Heráclito como mobilista absoluto, defensor de que tudo é devir e que o devir é absoluto. Mas, antes de analisar essa questão, precisamos responder outra nada banal: o que é o devir?
Platão separa o movimento em dois tipos: a translação ("[...] quando ela muda de lugar e também quando gira em torno do mesmo ponto [...]"), referindo-se a movimentos no espaço-tempo e a alteração, como mudança qualitativa ("[...] quando determinada coisa, parada no lugar em que está, vem a envelhecer ou de negra fica branca [...]"). Para Platão o devir de Heráclito seria relativo aos dois tipos de movimento. Essa questão é controversa. Particularmente, me parece que Heráclito trata do devir como alteração qualitativa e não movimento físico em seus fragmentos, mas Platão talvez tenha tido acesso a mais textos de Heráclito do que nós. Além disso, essa separação talvez não seja algo simples, se analisarmos com base na ciência atual: uma alteração de cor, por exemplo, não deve ser considerada como uma mudança espaço-temporal nos átomos da superfície de um objeto? Assim sendo, ela seria uma translação ou uma alteração? Será que, na contemporaneidade, considerando-se a química e a física quântica, podemos definir claramente os limites dessa separação platônica?
Outra abordagem da questão do devir para Heráclito (que me parece mais importante que a do Teeteto): ele trataria dos objetos que compõem a realidade ou das relações entre esses objetos? Se pensarmos que o mundo é algo pronto, dado, talvez a análise apenas dos objetos, a partir do puro Logos, nos baste. Mas Heráclito é anterior à separação Platônica de Logos e Mito. É ligado ao mistério e ao mito e consegue perceber o mostrar-se (e esconder-se) do real como experiência originária. Ele vê no fogo, por exemplo, muito mais que o fogo dado, banal, pronto, definido, esperado. Ao contemplar as chamas, Heráclito surpreende-se com o fogo, e esse processo onde a filosofia toca o mito faz com que se abra o "ver ontológico". Não se trata de compreender a essência metafísica do fogo como algo separado do fogo que se mostra, mas sim o seu aparecer originário, seu brotamento e morte constante mas novo a cada instante, seu crepitar, seu calor, seu brilho, todo o devir constante de relações com o corpo que o sente. O fogo, aliás, talvez seja a melhor metáfora para o fragmento que diz "Transformando-se, repousa." Sem tranformação, não há chamas. Onde não há transformação, o fogo já apagou.
Podemos, então, dizer que na concepção de devir há pelo menos dois "devires": um devir "ontológico", o da physis, que é o do vir-a-ser do que antes não era, e um devir dentro do plano do que já é, das coisas do mundo e das relações que percebemos através dos sentidos. Mas não parece haver uma divisão precisa entre esses dois "tipos" de devir.
Agora que consideramos a complexidade e dificuldade da questão do devir, voltemos à questão do mobilismo absoluto, em Heráclito:
Fragmento 1: "Com o Logos, porém, que é sempre, os homens se comportam como quem não compreende tanto antes como depois de já ter ouvido. Como efeito, tudo vem a ser conforme e de acordo como este Logos e, não obstante, eles parecem sem experiência nas experiências com palavras e obras, iguais às que levo à cabo, discernindo e elucidando, segundo o vigor, o modo em que se conduz cada coisa. Aos outros homens, porém, lhes fica encoberto tanto o que fazem acordados, como se lhes volta a encobrir o que fazem durante o sono."
Com o vigor da physis brotando nessa análise do real, Heráclito, já no seu fragmento primeiro, afirma que o Logos "é sempre", é tempo aión, sem início nem fim, diferente da dimensão do tempo de cronos. Considerando-se também o fragmento 84 ("Transformando-se, repousa."), o fragmento 30 ("O mundo, o mesmo em todos, nenhum dos deuses e nenhum dos homens o fez mas sempre foi, é e será, fogo sempre vivo, acendendo segundo a medida e segundo a medida apagando.") me parece impossível compartilhar a visão de muitos apologetas do devir radical de que para Heráclito tudo é devir e mudança, como que forçando um exagero na visão do movimento em Heráclito, do mesmo modo que o fazem com a estabilidade em Parmênides. Todos esses fragmentos tratam de um ponto em comum: um repouso na transformação, uma perenidade além do tempo cronológico, e uma continuidade, uma conjunção de antes e depois no fogo sempre vivo do mundo.
Outro fragmento que pode se interpretar como contrário ao devir absoluto é o famoso 50 ("Auscultando não a mim mas o Logos, é sábio concordar que tudo é um."), pois, neste trecho, temos um princípio constante e originário que unifica a totalidade, se conseguirmos percebê-la através do Logos. E esse um não se desgasta, não se corrói: o verbo usado é ser, não estar.
Além do real em suas manifestações múltiplas e que percebemos através desse espaço-tempo imediato, Heráclito percebe um real originário e uno, uma totalidade integrada, além do tempo cronos, que se esconde dos outros homens (os muitos que dormem, ou os "hoi-poloi", presos a visões particulares dos entes). Mas é interessante observarmos que Heráclito destaca também constâncias. A própria mudança, o devir, o novo, o instantâneo que brota a cada instante da physis numa nova configuração. Como podemos, então, concordar com o mobilismo absoluto como atribuição corrente feita ao pensamento de Heráclito, se há constância, para ele, até mesmo no próprio devir?
Até mesmo Platão parece apontar para uma situação impossível ao analisar mais detidamente essa hipótese de mobilismo absoluto no Teeteto (passagens 179d a 183c). Se até mesmo as sensações não possuem nada fixo, seria mais correto afirmar que algo não é visto do que é visto. Se conhecimento é sensação, o problema se estende ao conhecimento, ficando qualquer resposta à questão “o que é conhecimento?” igualmente justa, já que nada “é” e tudo “está”. Para Francis Conford, a leitura radical de Heráclito nessa passagem do Teeteto leva ao absurdo. Se tudo se move, nem a linguagem seria possível, se tudo se transforma o tempo todo. Imaginemos como nos fazer entender sem nada fixo: o som dos fonemas, o sentido das palavras etc. É com isso que brinca Sócrates (183b), alfinetando os apologetas do devir total e absoluto, ao responder a Teodoro, que havia dito que Sócrates tinha razão dessa forma: "Menos, Teodoro, no ter eu dito: Assim e Não assim. Pois nunca devemos valer-nos da expressão Assim, visto que esse Assim já não seria movimento. [...]"


4. Refutação final

A refutação final à tese de Protágoras inicia-se com a constatação de que a percepção sensível se dá por meio dos órgãos e não com eles. Essa exigência de precisão nas palavras por parte de Sócrates visa identificar um “princípio percebedor” no corpo, para os vários sentidos, que consegue, inclusive, analisar separadamente cada sensação (por exemplo, cor e sabor de uma fruta). Estaria na alma (ou na razão) esse princípio, e não em algum órgão particular. Assim, “[...] algumas coisas a alma investiga por si mesma, e outras por meio das diferentes faculdades do corpo [...] ” (185e). Através da alma (razão) é que se pode comparar as propriedades das coisas, usando conceitos como maior e menor, igualdade, semelhança etc. Assim, os homens captam impressões pelo corpo, mas para relacioná-las entre si ou chegar à sua essência, precisa-se da alma (razão). E a verdade sobre uma coisa só seria alcançada através da essência dessa coisa, no raciocínio a seu respeito. Aí, sim, se encontraria o conhecimento, e não nas impressões primeiras dos sentidos, que qualquer animal além do homem também possui. Essas impressões diretas dos sentidos, Sócrates chama de sensações, separando-as do conhecimento que se obtém através da alma (razão). Refuta, assim, mais uma vez, a igualdade entre conhecimento e sensação.


Bibliografia:

PLATÃO. Diálogos.Volume IX: Teeteto – Crátilo. Pará: Universidade Federal do Pará, 1973.

OS PENSADORES ORIGINÁRIOS. Anaximandro, Parmênides, Heráclito. Trad. Emmanuel Carneiro Leão e Sérgio Wrublewiski. Petrópolis: Vozes, 1991.



(Fabio Rocha)

DE HERÁCLITO A NIETZSCHE

Se pensarmos em ligações entre Heráclito e Nietzsche, muito possivelmente o primeiro conceito de que nos lembraremos é o do devir. Mas o que é devir?

Platão, no Teeteto (passagens 181c a 181e), separa o movimento de uma coisa em dois tipos: a translação e a alteração. Translação referindo-se a movimentos no espaço-tempo de uma coisa. ("[...] quando ela muda de lugar e também quando gira em torno do mesmo ponto [...]"). Alteração, como mudança qualitativa ("[...] quando determinada coisa, parada no lugar em que está, vem a envelhecer ou de negra fica branca [...]"). Para Platão o devir de Heráclito seria relativo a esses dois tipos de movimento. Essa questão é controversa. Particularmente, me parece que Heráclito trata do devir como alteração qualitativa e não movimento físico-espacial em seus fragmentos, mas Platão talvez tenha tido acesso a mais textos de Heráclito do que nós. Além disso, essa separação talvez não seja algo tão simples hoje em dia, se a analisarmos com base na ciência atual: uma alteração de cor, por exemplo, de preto para branco, não deve ser considerada como uma mudança espaço-temporal, já que ela consiste num movimento espacial diferente nos átomos da superfície do objeto? Assim sendo, ela seria uma translação ou uma alteração? Será que, na contemporaneidade, considerando-se a química e a física quântica, podemos definir claramente os limites dessa separação platônica entre movimentos no espaço e mudanças qualitativas?

Outra abordagem da questão do devir para Heráclito (que me parece mais importante, inclusive, que a anterior feita no Teeteto): ele trataria dos objetos que compõem a realidade ou das relações entre esses objetos? Se pensarmos que o mundo é algo pronto, dado, talvez a análise apenas dos objetos, a partir do puro Logos, nos baste. Mas Heráclito é anterior à separação Platônica de Logos e Mito. É ligado ao mistério e ao mito e consegue perceber o mostrar-se (e esconder-se) do real como experiência originária. Ele vê no fogo, por exemplo, muito mais que o fogo dado, banal, pronto, definido, esperado. Ao contemplar as chamas, Heráclito surpreende-se com o fogo, e esse processo onde a filosofia toca o mito faz com que se abra o que Aristóteles chamou de "ver ontológico". Não se trata de compreender a essência metafísica do fogo como algo separado do fogo que se mostra, mas sim o seu aparecer originário, seu brotamento e morte constante, mas novo a cada instante, seu crepitar, seu calor, seu brilho, todo o devir de relações com o corpo que o sente. O fogo, aliás, talvez seja a melhor metáfora para o fragmento heraclítico que diz "Transformando-se, repousa." Sem tranformação, não há chamas. Onde não há transformação, o fogo já apagou.

Para Nietzsche, a questão parece ter início já no seu primeiro livro, publicado em 1872, "O Nascimento da Tragédia". Nele, podemos pensar em dois tipos de devir, cada um ligado a um dos "impulsos artísticos da natureza" de que ele trata. Ao Dionisíaco, estaria ligado o devir da physis grega, o brotamento originário da vida, o nascimento eterno de cada instante, o vir-a-ser do que antes não era, partindo do que ele chama de "Uno-primordial" e tranformando-se em coisas, realidade. Ao Apolíneo, podemos ligar o devir das relações e das configurações das coisas individuais que apreendemos através dos sentidos, do "véu de Maia". Mas as coisas que nascem, ciclicamente, morrem. Assim, o devir se confunde nos dois impulsos opostos e complementares Apolíneo e Dionisíaco, pois todas as várias individuações apolíneas que nascem acabam retornando com seu fim para o Dioniso do Uno-primordial num movimento eterno. O que nos leva de volta a Heráclito, em seu fragmento 8, que diz: "O contrário em tensão é convergente; da divergência dos contrários, a mais bela harmonia".

É notável a influência dessa percepção do real afirmadora do devir em Nietzsche. A "vontade de poder", consiste numa teia de forças (ou relações ou elementos) em eterna luta, onde que a cada instante há uma síntese de vários elementos ao poder unificador de uma perspectiva vitoriosa (que seria a perspeciva que abarca o maior número de elementos). E essa vitória dura apenas um instante, sendo o próximo instante um reinício do zero, sem relação de causalidade com o anterior. É uma visão nietzscheana totalmente diferente de uma realidade definitiva, dada, pronta e estável. Vale destacar que a vontade de poder não é transcendente ou imanente, mas o elemento que compõe toda a realidade. Do mesmo modo que as cores granuladas ao se olhar de perto um quadro impressionista o formam. E, para Nietzsche, o devir contribui com a vontade de poder, por trazer incessantemente novos elementos para entrarem em conflito, que serão integrados ou não na teia de forças que compõe cada instante.

Podemos, então, dizer que em ambos os pensadores, há pelo menos dois "devires": um devir "ontológico", o da physis, que é o do vir-a-ser do que antes não era, e um devir dentro do plano do que já é, das coisas do mundo e das relações que percebemos através dos sentidos. Mas não parece haver uma divisão precisa entre esses dois "tipos" de devir.


Agora que consideramos a complexidade e dificuldade da questão do devir, vamos à questão do mobilismo absoluto, em Heráclito. Para Nietzsche, no seu "A Filosofia na Idade Trágica dos Gregos", Heráclito é colocado como o oposto extremo de Parmênides, como fogo e gelo.Nietzsche afirma que Heráclito nega o ser em geral: tudo seria estar... A tradição parece acompanhar essa interpretação de Nietzsche. Muito possivelmente ela teve como uma de suas origens a leitura apressada dos famosos fragmentos 12 e 49a de Heráclito:

Fragmento 12: "Para os que entram nos mesmos rios, afluem sempre outras águas; mas do úmido exalam também os vapores."

Fragmento 49a: "No mesmo rio entramos e não entramos; somos e não somos."

Porém, devemos considerar também outros fragmentos de Heráclitos, tais como:

Fragmento 1: "Com o Logos, porém, que é sempre, os homens se comportam como quem não compreende tanto antes como depois de já ter ouvido. Como efeito, tudo vem a ser conforme e de acordo como este Logos e, não obstante, eles parecem sem experiência nas experiências com palavras e obras, iguais às que levo à cabo, discernindo e elucidando, segundo o vigor, o modo em que se conduz cada coisa. Aos outros homens, porém, lhes fica encoberto tanto o que fazem acordados, como se lhes volta a encobrir o que fazem durante o sono."

Heráclito afirma, já no seu fragmento primeiro, que o Logos "é sempre", é tempo aión, sem início nem fim, diferente da dimensão do tempo de cronos. Ou seja, já fala aí de uma permanência, negando um devir absolutizado.

Considerando-se também o fragmento 84 ("Transformando-se, repousa."), percebemos um repouso no próprio movimento, ou seja, uma constância, algo perene, em repouso.

Fragmento 30 ("O mundo, o mesmo em todos, nenhum dos deuses e nenhum dos homens o fez, mas sempre foi, é e será, fogo sempre vivo, acendendo segundo a medida e segundo a medida apagando.") Aqui, há uma noção de eternidade estável, de perenidade constante, de algo que sempre foi, é e será como o fogo inapagável, que mesmo em eterna transformação a cada crepitar, a cada variação de suas chamas dançantes, continua sendo fogo.

Outro fragmento Heraclítico que se pode interpretar como contrário ao devir absoluto é o famoso 50 ("Auscultando não a mim mas o Logos, é sábio concordar que tudo é um."). Neste trecho, notamos um princípio constante e originário que unifica a totalidade, se conseguirmos percebê-la através do Logos. E esse um não se desgasta, não se corrói: o verbo usado é ser, não estar.

Assim, me parece impossível compartilhar a visão de muitos apologetas do devir radical de que para Heráclito tudo é devir e mudança, como que forçando um exagero, uma radicalismo do movimento em Heráclito, do mesmo modo que o fazem com a estabilidade em Parmênides. Se lermos mais atentamente, todos esses fragmentos tratam de um ponto em comum: um repouso na transformação, uma perenidade além do tempo cronológico, e uma continuidade, uma conjunção de antes e depois no fogo sempre vivo do mundo.


Até mesmo Platão parece apontar para uma situação impossível ao analisar mais detidamente a hipótese de mobilismo absoluto no Teeteto (passagens 179d a 183c). Para Francis Conford, a leitura radical de Heráclito nessa passagem do Teeteto leva ao absurdo. Nem a linguagem seria possível, se tudo se transforma o tempo todo. Imaginemos como nos fazer entender sem nada fixo: o som dos fonemas, o sentido das palavras etc. É com isso que brinca Sócrates (em 183b), alfinetando os apologetas do devir total e absoluto, ao responder a Teodoro, que havia dito que Sócrates tinha razão dessa forma: "Menos, Teodoro, no ter eu dito: Assim e Não assim. Pois nunca devemos valer-nos da expressão Assim, visto que esse Assim já não seria movimento. [...]"


Assim, podemos perceber que Heráclito não é um apologeta do devir radical. Heráclito fala de um real originário e uno, uma totalidade integrada além do real em suas manifestações múltiplas que percebemos através desse espaço-tempo imediato, além do tempo cronos, que se esconde dos outros homens (os muitos que dormem, ou os "hoi-poloi", presos a visões particulares dos entes). Devemos observar que Heráclito destaca também uma constância no próprio devir: o que brota a cada instante da physis numa nova configuração, continuamente.

(Fabio Rocha)

POEMATIZANDO

Sim, talvez realmente seja uma idéia original minha, toda minha, comentar que a separação que Nietzsche percebe entre o Sagrado Deus e o nosso mundo vil e real se reflita nas profissões: o Dr. Médico de letra difícil e o paciente analfabeto, o Dr. Filósofo incompreensível e o leitor do Mundo de Sofia, o Dr. Advogado com o Dom da Palavra e o pobre cliente leigo...

Mas e se qualquer esforço for apenas um esforço? (No caso, um comentário esforçado?)

Uma corrente de peso a ser arrastada
enquanto perdemos a leveza da luzes laranjas dos postes elétricos
que passam pelos carros
no agora (ops, passou)
nas noites cheias de canto
e encontro
e encanto?


(Fabio Rocha)

COMICIDADE E UTILIDADE DA FILOSOFIA

Há algo na essência da Filosofia em geral, uma tendência a romper padrões, mudar de perspectiva, destruir certezas tão dogmáticas nas almas dos muitos (os "hoi-poloi" de Heráclito) que acaba por provocar neles (e em nós mesmos, pois quem pode se colocar de fora desse "rebanho" nietzschiano?) a comicidade? Os textos de Platão estão recheados desse tipo de comportamento frente a elocubrações de Sócrates...

Na época em que vivemos, de materialismo, utilitarismo, tecnicismo, cientificismo e consumismo (isso para economizar "ismos"), a Filosofia pode parecer inútil. Mas qual é a utilidade de um poema ou uma música, como bem diz Rubem Alves?

Tenho esperança que as universidades, principalmente as de Filosofia, um dia irão além dessas "formas de escola mais esclerosadas", como escreveu Heidegger, por se preocuparem cada vez menos com o universal (constitutivo de seu próprio nome!), e cada vez mais com a especialização. Até em Filosofia!

Na minha vã esperança, agora voltada especialmente para as faculdade de Filosofia, também há espaço para acreditar que um dia mais professores conseguirão ensinar a pensar (como Sócrates fazia), e menos a repetir a História da Filosofia. O som de fundo do ensino de Filosofia é o das fotocopiadoras e não o da criação...

E por que não fechar com Nietzsche? (Aforismo 29 do "Crepúsculo dos ídolos"):

"- Qual é a tarefa de todo ensino mais elevado?

- Tornar o homem uma máquina.

- Qual o meio para tanto?

- Ele precisa aprender a entediar-se."


(Fabio Rocha)

DE HERÁCLITO A NIETZSCHE

Para uma melhor organização, separaremos este trabalho em quatro tópicos, comparando o pensamento de Heráclito e Nietzsche em cada um deles:


1 - O DEVIR

Fragmento 12: "Para os que entram nos mesmos rios, afluem sempre outras águas; mas do úmido exalam também os vapores."

Fragmento 49a: "No mesmo rio entramos e não entramos; somos e não somos."

Aparentemente desses dois fragmentos a tradição estabeleceu um estereótipo de Heráclito como mobilista absoluto, defensor de que tudo é devir e que o devir é absoluto. Mas, antes de analisar essa questão, precisamos responder outra nada banal: o que é o devir?


O QUE É DEVIR?

Platão, no Teeteto (181c a 181e), separa o movimento em dois tipos: a translação ("[...] quando ela muda de lugar e também quando gira em torno do mesmo ponto [...]"), referindo-se a movimentos no espaço-tempo e a alteração, como mudança qualitativa ("[...] quando determinada coisa, parada no lugar em que está, vem a envelhecer ou de negra fica branca [...]"). Para Platão o devir de Heráclito seria relativo aos dois tipos de movimento. Essa questão é controversa. Particularmente, me parece que Heráclito trata do devir como alteração qualitativa e não movimento físico em seus fragmentos, mas Platão talvez tenha tido acesso a mais textos de Heráclito do que nós. Além disso, essa separação talvez não seja algo simples, se analisarmos com base na ciência atual: uma alteração de cor, por exemplo, não deve ser considerada como uma mudança espaço-temporal nos átomos da superfície de um objeto? Assim sendo, ela seria uma translação ou uma alteração? Será que, na contemporaneidade, considerando-se a química e a física quântica, podemos definir claramente os limites dessa separação platônica?

Outra abordagem da questão do devir para Heráclito (que me parece mais importante que a do Teeteto): ele trataria dos objetos que compõem a realidade ou das relações entre esses objetos? Se pensarmos que o mundo é algo pronto, dado, talvez a análise apenas dos objetos, a partir do puro Logos, nos baste. Mas Heráclito é anterior à separação Platônica de Logos e Mito. É ligado ao mistério e ao mito e consegue perceber o mostrar-se (e esconder-se) do real como experiência originária. Ele vê no fogo, por exemplo, muito mais que o fogo dado, banal, pronto, definido, esperado. Ao contemplar as chamas, Heráclito surpreende-se com o fogo, e esse processo onde a filosofia toca o mito faz com que se abra o que Aristóteles chamou de "ver ontológico". Não se trata de compreender a essência metafísica do fogo como algo separado do fogo que se mostra, mas sim o seu aparecer originário, seu brotamento e morte constante mas novo a cada instante, seu crepitar, seu calor, seu brilho, todo o devir constante de relações com o corpo que o sente. O fogo, aliás, talvez seja a melhor metáfora para o fragmento que diz "Transformando-se, repousa." Sem tranformação, não há chamas. Onde não há transformação, o fogo já apagou.

Para Nietzsche, a questão parece ter início já no seu primeiro livro, publicado em 1872, "O Nascimento da Tragédia". Nele, podemos pensar em dois tipos de devir, cada um ligado a um dos "impulsos artísticos da natureza" de que ele trata. Ao Dionisíaco, o devir da physis grega, o brotamento orogonário da vida, o nascimento eterno de cada instante, o vir-a-ser do que antes não era, do que ele chama de "Uno-primordial". Ao Apolíneo, podemos ligar o devir das relações e das configurações das coisas individuais que apreendemos através dos sentidos, do "véu de Maia". Mas as coisas que nascem, ciclicamente, morrem. Assim, o devir se confunde nos dois impulsos opostos e complementares, pois todas as várias individuações apolíneas acabam retornando para o Dioniso do Uno-primordial num movimento sem início ou fim. O que nos leva de volta a Heráclito, em seu fragmento 8, que diz: "O contrário em tensão é convergente; da divergência dos contrários, a mais bela harmonia".

É notável a influência dessa percepção do real afirmadora do devir em Nietzsche. OEle contribui com a "vontade de poder", que consiste numa teia de forças (ou relações ou elementos) mutantes e em eterna luta, onde que a cada instante há uma síntese de vários elementos ao poder unificador de uma perspectiva vitoriosa (a que abarca o maior número de elementos). E essa vitória dura apenas um instante, sendo o próximo instante um reinício do zero, sem relação de causalidade com o anterior. É mais uma crítica nietzscheana a uma realidade definitiva, dada, pronta e estável. Vale destacar que a vontade de poder não é transcendente ou imanente, mas o que compõe todo o real. Como as cores granuladas (ao se olhar de perto) compõem um quadro impressionista. E o devir contribui com a vontade de poder por trazer incessantemente novos elementos para entrarem em conflito, que serão integrados ou não na teia de forças que compõe cada instante.

Podemos, então, dizer que em ambos os pensadores, na concepção de devir há pelo menos dois "devires": um devir "ontológico", o da physis, que é o do vir-a-ser do que antes não era, e um devir dentro do plano do que já é, das coisas do mundo e das relações que percebemos através dos sentidos. Mas não parece haver uma divisão precisa entre esses dois "tipos" de devir.


MOBILISMO ABSOLUTO?

Agora que consideramos a complexidade e dificuldade da questão do devir, voltemos à questão do mobilismo absoluto, em Heráclito:

Fragmento 1: "Com o Logos, porém, que é sempre, os homens se comportam como quem não compreende tanto antes como depois de já ter ouvido. Como efeito, tudo vem a ser conforme e de acordo como este Logos e, não obstante, ele parecem sem experiência nas experiências com palavras e obras, iguais às que levo à cabo, discernindo e elucidando, segundo o vigor, o modo em que se conduz cada coisa. Aos outros homens, porém, lhes fica encoberto tanto o que fazem acordados, como se lhes volta a encobrir o que fazem durante o sono."

Com o vigor da physis brotando nessa análise do real, Heráclito, já no seu fragmento primeiro, afirma que o Logos "é sempre", é tempo aión, sem início nem fim, diferente da dimensão do tempo de cronos. Considerando-se também o fragmento 84 ("Transformando-se, repousa."), o fragmento 30 ("O mundo, o mesmo em todos, nenhum dos deuses e nenhum dos homens o fez mas sempre foi, é e será, fogo sempre vivo, acendendo segundo a medida e segundo a medida apagando.") me parece impossível compartilhar a visão de muitos apologetas do devir radical de que para Heráclito tudo é devir e mudança, como que forçando um exagero na visão do movimento em Heráclito, do mesmo modo que o fazem com a estabilidade em Parmênides. Todos esses fragmentos tratam de um ponto em comum: um repouso na transformação, uma perenidade além do tempo cronológico, e uma continuidade, uma conjunção de antes e depois no fogo sempre vivo do mundo.

Outro fragmento que pode se intepretar como contrário ao devir absoluto é o famoso 50 ("Auscultando não a mim mas o Logos, é sábio concordar que tudo é um."), pois, neste trecho, percebemos um princípio constante e originário que unifica a totalidade, se conseguirmos percebê-la através do Logos. E esse um não se desgasta, não se corrói: o verbo usado é ser, não estar.

Até mesmo Platão parece apontar para uma situação impossível ao analisar mais detidamente essa hipótese de mobilismo absoluto no Teeteto (passagens 179d a 183c). Para Francis Conford, a leitura radical de Heráclito nessa passagem do Teeteto leva ao absurdo. Nem a linguagem seria possível, se tudo se transforma o tempo todo. Imaginemos como nos fazer entender sem nada fixo: o som dos fonemas, o sentido das palavras etc. É com isso que brinca Sócrates (183b), alfinetando os apologetas do devir total e absoluto, ao responder a Teodoro, que havia dito que Sócrates tinha razão dessa forma: "Menos, Teodoro, no ter eu dito: Assim e Não asim. Pois nunca devemos valer-nos da expressão Assim, visto que esse Assim já não seria movimento. [...]"

Além do real em suas manifestações múltiplas e que percebemos através desse espaço-tempo imediato, Heráclito percebe um real originário e uno, uma totalidade integrada, além do tempo cronos, que se esconde dos outros homens (os muitos que dormem, ou os "hoi-poloi", presos a visões particulares dos entes). Mas é interessante observarmos que Heráclito destaca também uma constância: a mudança, o devir, o novo, o instantâneo que brota a cada instante da physis numa nova configuração. Fragmento 84 de Heráclito: "Transformando-se, repousa." O todo de Heráclito é a fonte do ser, "é sempre", mas se mostra de uma nova forma a cada instante. Assim, o devir "é sempre" (sem início ou fim), da mesma maneira que o Logos no fragmento acima. Como podemos, então, afirmar o mobilismo absoluto como atribuição corrente feita ao pensamento de Heráclito, se há constância, para ele, no próprio devir?

Ainda sobre a questão do mobilismo absoluto, para Nietzsche, no seu "A Filosofia na Idade Trágica dos Gregos", Heráclito parece ser o oposto de Parmênides, como fogo (móvel) e gelo (imóvel). Afirma que Heráclito nega o ser em geral: tudo é estar... Mas o


2 - A GUERRA DE OPOSTOS




3 - A CRIANÇA E A INOCÊNCIA

fragmento 79: "A partir do extraordinário o homem, infantil, como a partir do homem, a criança."

O homem vem do extraordinário, e a criança deve brotar do homem, para Heráclito. E as três metamorfoses do Zaratustra de Nietzsche também nos levam para a criança. Sendo todos filhos do extraordinário, devemos levar nosso esforço de vida para retornar a inocência da criança que joga dados consigo mesma, como fazia Picasso em sua pintura?

fragmento 52: "O tempo é uma criança, criando, jogando o jogo de pedras; vigência da criança."


4 - O TEMPO AYÓN DE HERÁCLITO E O INSTANTE EXTRAORDINÁRIO NIETZCHIANO


5 - UNIDADE NA MULTIPLICIDADE

Fragmento 50: "Auscultando não a mim mas o Logos, é sábio concordar que tudo é um."

Fragmento 103: "Princípio e fim se reúnem na circunferência do círculo."

Fragmento 123: "Surgimento já tende ao encobrimento."

Fragmento 102: "Para o Deus, tudo é belo, bom e justo. Os homens, porém, tomam umas coisas por injustas, outras por justas."

Fragmento 101: "Eu me busco a mim mesmo."



(Fabio Rocha)

AUTOCONVERSA SOBRE CONSERVAÇÃO

Ser ateu é negar o Deus padrão. OK. E isso é o mesmo que permanecer preso a Deus, como um escravo liberto que vive a vida ainda da medida da prisão, retendo o cárcere consigo. Parte-se de Deus para negá-lo, como uma vingança inútil. Certo Nietzsche?

Para minha vida prática, me veio instantaneamente a questão do trabalho. Será que é por isso que minha ansiedade permanece, mesmo após eu parar de trabalhar? (Menor, mas presente.) Estar ou não trabalhando gera ansiedade da mesma forma, por estar eu, escravo, vivendo para negar as grades do labor? E, assim estando, me mantenho preso a esse modo de vida (e de vista)? O ócio ainda quase agoniento seria uma negação ao trabalho? Precisaria primeiro do trabalho, para depois ser negado, se mantendo assim, preso ao trabalho?

Devo eu tentar considerar a criação artística como trabalho e me acalmar? (Acho que isso eu já tento...)

Ou talvez precise mudar a perspectiva: mudar para um ócio primeiro (não no sentido temporal, mas ontológico). Um ócio que seja por si só. Ócio não para não fazer nada em contraposição vingativa ao fazer do trabalho. Mas um ócio além da visão utilitarista da vida... Um ócio que não seja necessariamente ócio e não meça nem se estou no ócio ou produzindo algo. Talvez.

Do mesmo modo, um anti-consumismo contra o bombardeio do marketing talvez não seja a resposta. Mas algo originário... E original. Sem o quê de vingança.

Uma outra questão levantada nas aulas de hoje, por onde divaguei: Será que existem filósofos contemporâneos (FILÓSOFOS - e não professores de história da filosofia) em algum canto escondido do mundo que produzem pensamentos próprios em vez de comentar os dos outros? E por quanto tempo repetiremos reclamações na esperança de que outros mudem o mundo, nos colocando de forma tão passiva perante a realidade?

(Fabio Rocha)

Sicko, de Michael Moore e sobre a necessidade urgente de Filosofia no mundo

Estava vendo o mais novo documentário de Michael Moore, "Sicko" (de 2007), baixado na internet em poucos minutos, e resolvi escrever algo aqui sobre ele. Recomendo, antes de tudo, qualquer filme do Michael Moore, até os que não vi... "Tiros em Columbine", particularmente sobre o tema do medo, achei genial. Mas o Sicko, é um choque já desde o início: um estadunidense de classe média acidentado costurando o horrível rasgo no próprio joelho na poltrona de sua casa para não ter que pagar um absurdo por tratamento médico.

Impressionante como nos habituamos a tudo, espectadores passivos do mundo, não nos revoltamos mais com nada, não achamos que podemos mudar nada, e, para ir mais fundo, penso que nos sentimos cada vez menos PARTE desse todo. No próprio filme, pessoas que trabalham no sistema doente dos planos de saúde dos EUA choram ao falar do emprego mas não largam os mesmos. Será que o nosso sistema atual não nos dá opção de sobreviver em uma atividade que pareça BOA se olharmos para ela de uma perspectiva filosófica? Mesmo que a renda caia, será que a felicidade de alguém só pode ser medida pelas cifras em sua conta bancária?

Caso pessoal: Eu mesmo, formado em administração de empresas, não sosseguei até mudar de área, mesmo vivendo com muito menos dinheiro... Mas sou muito mais satisfeito agora estudando Filosofia e "trabalhando" na criação de textos pro blog (ah, e poesia...), manutenção do meu site e webdesign para escritores. Isso porque, filosoficamente, me diga para que serve qualquer empresa? Qual o seu fim último? (Sem, claro, cair nas armadilhas de seus lemas internos que nunca correspondem à realidade). LUCRO, certo? Para quem? Para os seus donos ou sócios. Agora, sócios ou donos de empresas são pobres? Penso que não... Talvez haja exceções, (comentem suas idéias") mas eu tenho a ligeira impressão de que trabalhando para qualquer empresa você está simplesmente ajudando a CONCENTRAR AINDA MAIS RENDA. Ricos mais ricos e pobres mais pobres... Simples assim. Em troca disso, você recebe seu salário (de valor já calculado para não atrapalhar nos lucros, obviamente).

OK, talvez seja um ligeiro exagero... Mas e quando você trabalha ENGANANDO gente? Vendendo coisas que não precisam comprar? Vendendo cartões de crédito para se endividarem? Vendendo idéias para fazer pessoas comprar? Você já teve um olhar mais aprofundado sobre o que você anda, EFETIVAMENTE, fazendo no mundo de segunda a sexta, oito horas por dia?

Pior ainda: e quando a sua empresa MATA GENTE DIRETAMENTE para aumentar os lucros? É o caso das empresas que vendem os planos de saúde nos USA, desde que o governo deu a brecha para elas se instalarem (neoliberalistas de plantão, não percam esse filme). Moore, como sempre, nos choca e faz pensar.

(Fabio Rocha)