DE HERÁCLITO A NIETZSCHE

Para uma melhor organização, separaremos este trabalho em quatro tópicos, comparando o pensamento de Heráclito e Nietzsche em cada um deles:


1 - O DEVIR

Fragmento 12: "Para os que entram nos mesmos rios, afluem sempre outras águas; mas do úmido exalam também os vapores."

Fragmento 49a: "No mesmo rio entramos e não entramos; somos e não somos."

Aparentemente desses dois fragmentos a tradição estabeleceu um estereótipo de Heráclito como mobilista absoluto, defensor de que tudo é devir e que o devir é absoluto. Mas, antes de analisar essa questão, precisamos responder outra nada banal: o que é o devir?


O QUE É DEVIR?

Platão, no Teeteto (181c a 181e), separa o movimento em dois tipos: a translação ("[...] quando ela muda de lugar e também quando gira em torno do mesmo ponto [...]"), referindo-se a movimentos no espaço-tempo e a alteração, como mudança qualitativa ("[...] quando determinada coisa, parada no lugar em que está, vem a envelhecer ou de negra fica branca [...]"). Para Platão o devir de Heráclito seria relativo aos dois tipos de movimento. Essa questão é controversa. Particularmente, me parece que Heráclito trata do devir como alteração qualitativa e não movimento físico em seus fragmentos, mas Platão talvez tenha tido acesso a mais textos de Heráclito do que nós. Além disso, essa separação talvez não seja algo simples, se analisarmos com base na ciência atual: uma alteração de cor, por exemplo, não deve ser considerada como uma mudança espaço-temporal nos átomos da superfície de um objeto? Assim sendo, ela seria uma translação ou uma alteração? Será que, na contemporaneidade, considerando-se a química e a física quântica, podemos definir claramente os limites dessa separação platônica?

Outra abordagem da questão do devir para Heráclito (que me parece mais importante que a do Teeteto): ele trataria dos objetos que compõem a realidade ou das relações entre esses objetos? Se pensarmos que o mundo é algo pronto, dado, talvez a análise apenas dos objetos, a partir do puro Logos, nos baste. Mas Heráclito é anterior à separação Platônica de Logos e Mito. É ligado ao mistério e ao mito e consegue perceber o mostrar-se (e esconder-se) do real como experiência originária. Ele vê no fogo, por exemplo, muito mais que o fogo dado, banal, pronto, definido, esperado. Ao contemplar as chamas, Heráclito surpreende-se com o fogo, e esse processo onde a filosofia toca o mito faz com que se abra o que Aristóteles chamou de "ver ontológico". Não se trata de compreender a essência metafísica do fogo como algo separado do fogo que se mostra, mas sim o seu aparecer originário, seu brotamento e morte constante mas novo a cada instante, seu crepitar, seu calor, seu brilho, todo o devir constante de relações com o corpo que o sente. O fogo, aliás, talvez seja a melhor metáfora para o fragmento que diz "Transformando-se, repousa." Sem tranformação, não há chamas. Onde não há transformação, o fogo já apagou.

Para Nietzsche, a questão parece ter início já no seu primeiro livro, publicado em 1872, "O Nascimento da Tragédia". Nele, podemos pensar em dois tipos de devir, cada um ligado a um dos "impulsos artísticos da natureza" de que ele trata. Ao Dionisíaco, o devir da physis grega, o brotamento orogonário da vida, o nascimento eterno de cada instante, o vir-a-ser do que antes não era, do que ele chama de "Uno-primordial". Ao Apolíneo, podemos ligar o devir das relações e das configurações das coisas individuais que apreendemos através dos sentidos, do "véu de Maia". Mas as coisas que nascem, ciclicamente, morrem. Assim, o devir se confunde nos dois impulsos opostos e complementares, pois todas as várias individuações apolíneas acabam retornando para o Dioniso do Uno-primordial num movimento sem início ou fim. O que nos leva de volta a Heráclito, em seu fragmento 8, que diz: "O contrário em tensão é convergente; da divergência dos contrários, a mais bela harmonia".

É notável a influência dessa percepção do real afirmadora do devir em Nietzsche. OEle contribui com a "vontade de poder", que consiste numa teia de forças (ou relações ou elementos) mutantes e em eterna luta, onde que a cada instante há uma síntese de vários elementos ao poder unificador de uma perspectiva vitoriosa (a que abarca o maior número de elementos). E essa vitória dura apenas um instante, sendo o próximo instante um reinício do zero, sem relação de causalidade com o anterior. É mais uma crítica nietzscheana a uma realidade definitiva, dada, pronta e estável. Vale destacar que a vontade de poder não é transcendente ou imanente, mas o que compõe todo o real. Como as cores granuladas (ao se olhar de perto) compõem um quadro impressionista. E o devir contribui com a vontade de poder por trazer incessantemente novos elementos para entrarem em conflito, que serão integrados ou não na teia de forças que compõe cada instante.

Podemos, então, dizer que em ambos os pensadores, na concepção de devir há pelo menos dois "devires": um devir "ontológico", o da physis, que é o do vir-a-ser do que antes não era, e um devir dentro do plano do que já é, das coisas do mundo e das relações que percebemos através dos sentidos. Mas não parece haver uma divisão precisa entre esses dois "tipos" de devir.


MOBILISMO ABSOLUTO?

Agora que consideramos a complexidade e dificuldade da questão do devir, voltemos à questão do mobilismo absoluto, em Heráclito:

Fragmento 1: "Com o Logos, porém, que é sempre, os homens se comportam como quem não compreende tanto antes como depois de já ter ouvido. Como efeito, tudo vem a ser conforme e de acordo como este Logos e, não obstante, ele parecem sem experiência nas experiências com palavras e obras, iguais às que levo à cabo, discernindo e elucidando, segundo o vigor, o modo em que se conduz cada coisa. Aos outros homens, porém, lhes fica encoberto tanto o que fazem acordados, como se lhes volta a encobrir o que fazem durante o sono."

Com o vigor da physis brotando nessa análise do real, Heráclito, já no seu fragmento primeiro, afirma que o Logos "é sempre", é tempo aión, sem início nem fim, diferente da dimensão do tempo de cronos. Considerando-se também o fragmento 84 ("Transformando-se, repousa."), o fragmento 30 ("O mundo, o mesmo em todos, nenhum dos deuses e nenhum dos homens o fez mas sempre foi, é e será, fogo sempre vivo, acendendo segundo a medida e segundo a medida apagando.") me parece impossível compartilhar a visão de muitos apologetas do devir radical de que para Heráclito tudo é devir e mudança, como que forçando um exagero na visão do movimento em Heráclito, do mesmo modo que o fazem com a estabilidade em Parmênides. Todos esses fragmentos tratam de um ponto em comum: um repouso na transformação, uma perenidade além do tempo cronológico, e uma continuidade, uma conjunção de antes e depois no fogo sempre vivo do mundo.

Outro fragmento que pode se intepretar como contrário ao devir absoluto é o famoso 50 ("Auscultando não a mim mas o Logos, é sábio concordar que tudo é um."), pois, neste trecho, percebemos um princípio constante e originário que unifica a totalidade, se conseguirmos percebê-la através do Logos. E esse um não se desgasta, não se corrói: o verbo usado é ser, não estar.

Até mesmo Platão parece apontar para uma situação impossível ao analisar mais detidamente essa hipótese de mobilismo absoluto no Teeteto (passagens 179d a 183c). Para Francis Conford, a leitura radical de Heráclito nessa passagem do Teeteto leva ao absurdo. Nem a linguagem seria possível, se tudo se transforma o tempo todo. Imaginemos como nos fazer entender sem nada fixo: o som dos fonemas, o sentido das palavras etc. É com isso que brinca Sócrates (183b), alfinetando os apologetas do devir total e absoluto, ao responder a Teodoro, que havia dito que Sócrates tinha razão dessa forma: "Menos, Teodoro, no ter eu dito: Assim e Não asim. Pois nunca devemos valer-nos da expressão Assim, visto que esse Assim já não seria movimento. [...]"

Além do real em suas manifestações múltiplas e que percebemos através desse espaço-tempo imediato, Heráclito percebe um real originário e uno, uma totalidade integrada, além do tempo cronos, que se esconde dos outros homens (os muitos que dormem, ou os "hoi-poloi", presos a visões particulares dos entes). Mas é interessante observarmos que Heráclito destaca também uma constância: a mudança, o devir, o novo, o instantâneo que brota a cada instante da physis numa nova configuração. Fragmento 84 de Heráclito: "Transformando-se, repousa." O todo de Heráclito é a fonte do ser, "é sempre", mas se mostra de uma nova forma a cada instante. Assim, o devir "é sempre" (sem início ou fim), da mesma maneira que o Logos no fragmento acima. Como podemos, então, afirmar o mobilismo absoluto como atribuição corrente feita ao pensamento de Heráclito, se há constância, para ele, no próprio devir?

Ainda sobre a questão do mobilismo absoluto, para Nietzsche, no seu "A Filosofia na Idade Trágica dos Gregos", Heráclito parece ser o oposto de Parmênides, como fogo (móvel) e gelo (imóvel). Afirma que Heráclito nega o ser em geral: tudo é estar... Mas o


2 - A GUERRA DE OPOSTOS




3 - A CRIANÇA E A INOCÊNCIA

fragmento 79: "A partir do extraordinário o homem, infantil, como a partir do homem, a criança."

O homem vem do extraordinário, e a criança deve brotar do homem, para Heráclito. E as três metamorfoses do Zaratustra de Nietzsche também nos levam para a criança. Sendo todos filhos do extraordinário, devemos levar nosso esforço de vida para retornar a inocência da criança que joga dados consigo mesma, como fazia Picasso em sua pintura?

fragmento 52: "O tempo é uma criança, criando, jogando o jogo de pedras; vigência da criança."


4 - O TEMPO AYÓN DE HERÁCLITO E O INSTANTE EXTRAORDINÁRIO NIETZCHIANO


5 - UNIDADE NA MULTIPLICIDADE

Fragmento 50: "Auscultando não a mim mas o Logos, é sábio concordar que tudo é um."

Fragmento 103: "Princípio e fim se reúnem na circunferência do círculo."

Fragmento 123: "Surgimento já tende ao encobrimento."

Fragmento 102: "Para o Deus, tudo é belo, bom e justo. Os homens, porém, tomam umas coisas por injustas, outras por justas."

Fragmento 101: "Eu me busco a mim mesmo."



(Fabio Rocha)

AUTOCONVERSA SOBRE CONSERVAÇÃO

Ser ateu é negar o Deus padrão. OK. E isso é o mesmo que permanecer preso a Deus, como um escravo liberto que vive a vida ainda da medida da prisão, retendo o cárcere consigo. Parte-se de Deus para negá-lo, como uma vingança inútil. Certo Nietzsche?

Para minha vida prática, me veio instantaneamente a questão do trabalho. Será que é por isso que minha ansiedade permanece, mesmo após eu parar de trabalhar? (Menor, mas presente.) Estar ou não trabalhando gera ansiedade da mesma forma, por estar eu, escravo, vivendo para negar as grades do labor? E, assim estando, me mantenho preso a esse modo de vida (e de vista)? O ócio ainda quase agoniento seria uma negação ao trabalho? Precisaria primeiro do trabalho, para depois ser negado, se mantendo assim, preso ao trabalho?

Devo eu tentar considerar a criação artística como trabalho e me acalmar? (Acho que isso eu já tento...)

Ou talvez precise mudar a perspectiva: mudar para um ócio primeiro (não no sentido temporal, mas ontológico). Um ócio que seja por si só. Ócio não para não fazer nada em contraposição vingativa ao fazer do trabalho. Mas um ócio além da visão utilitarista da vida... Um ócio que não seja necessariamente ócio e não meça nem se estou no ócio ou produzindo algo. Talvez.

Do mesmo modo, um anti-consumismo contra o bombardeio do marketing talvez não seja a resposta. Mas algo originário... E original. Sem o quê de vingança.

Uma outra questão levantada nas aulas de hoje, por onde divaguei: Será que existem filósofos contemporâneos (FILÓSOFOS - e não professores de história da filosofia) em algum canto escondido do mundo que produzem pensamentos próprios em vez de comentar os dos outros? E por quanto tempo repetiremos reclamações na esperança de que outros mudem o mundo, nos colocando de forma tão passiva perante a realidade?

(Fabio Rocha)