A FILOSOFIA MEDIEVAL E A MORAL CRISTÃ

"O homem correto age pela lei interna, e não por mandamentos externos. Bebe as águas da Fonte, e não dos canais." – Lao Tse (Aforismos e trechos do Tao Te King)


Na Idade Média, o pensamento filosófico se tornou dependente da teologia. É nessa época que o Cristianismo se torna a religião oficial do império Romano e começa a se buscar fundamentos filosóficos para essa religião na Grécia Antiga.

Da Filosofia imanente do Estoicismo, de sua lei ética que tem como base a busca da felicidade, de sua negação da metafísica e de qualquer possibilidade de transcendência, os medievais extraem o conceito de NATUREZA como lei eterna, transformando-a em DEUS, criador de tudo. É nessa época que nasce também o conceito de pessoa, retirado do Evangelho.

Os neo-platônicos afirmavam que “Tudo emana do uno e tudo retorna ao uno.” (Plotino), o que pode ser interpretado como uma visão de toda a realidade como divina. Os cristãos não podem aceitar essa teoria, pois o mal seria também divino, e a idéia da criação divina cristã a partir do nada também seria divergente. Porém o modelo neo-platônico de Uno (Logos, fonte de emanação) / Inteligência (Nous) / Alma do Mundo (Psyché) formando um mundo superior, eterno e originário, separado do nosso mundo “Sub-Lunar” (humano, animal, vegetal, mineral), regido pelo tempo cronológico, pela finitude, imperfeição e composição de elementos, servirá de base para o Cristianismo.

Santo Agostinho, como os neo-platônicos, é pré-medieval. Ele é o fundador filosófico do cristianismo com arcabouço platônico. Sua ética terá como base o amor. Tudo poderia ser feito se tivesse como base o amor. A partir daqui é que pretendo me aprofundar na lei e moralidade cristã, com a intenção de destacar como a filosofia cristã, que teve como base a filosofia não-normativa grega (Platão, Aristóteles etc.) e seus primeiros passos morais com a liberdade total do amor em Santo Agostinho se tornou o que temos hoje.

Os gregos ligavam o bem ao belo, à justa medida. Uma ação nobre, considerada boa, bela e justa, poderia ser matar um inimigo em batalha, por exemplo. Nisso consistia uma moral não-normativa: cada ação não teria nela mesma algo de bom ou ruim, dependendo sempre da situação. Não havia uma norma geral, como no Cristianismo há o “Não matarás”. Mas tentemos analisar essa mudança radical desde suas origens.

Os moralistas cristãos procuraram primeiramente vincular o valor moral ao ato voluntário, que seria sua base. Reuniram os conceitos de beleza e honra numa noção mais abrangente, a de bem. Vincularam o bem a um princípio transcendente – a alma, que ganha importância em relação à pura virtude 1. Assim, a virtude nela mesma não é mais o bem supremo que era para os gregos, tendo importância agora apenas por conduzir o homem para Deus.

A partir daqui, podemos analisar melhor o surgimento da noção de pecado, que seria, antes de mais nada, um ato vicioso. E o vício é o oposto da virtude. Para Aristóteles, a virtude é um hábito, uma disposição adquirida e duradoura, que permite àquele que a possui agir em conformidade com a sua própria natureza. Assim, o agir moralmente bem teve como base helênica o agir espontaneamente conforme sua própria natureza. O pecado é, então, um ato contrário à natureza de quem o comete, é mau, é o resultado de um vício (contrário da virtude como perfeição). Assim, a base Aristotélica é mantida por São Tomás de Aquino.

Mas o que seria a natureza? Sendo a razão o que confere a nossa natureza seu caráter humano, a virtude e o bem moral que se harmonizem com nossa natureza devem se harmonizar, necessariamente, com nossa razão. Assim, o mal moral, o pecado e o vício passam a poder ser concebidos como falta de racionalidade no ato ou no costume. Tal como formulou Cícero, em sua definição de moralidade: “O costume de agir de acordo com o que querem a razão e a natureza”. 2

Essa definição parece insuficiente para um cristão, já que não fala de Deus nem das relações entre vontade humana e divina. Por isso, padres e teólogos da Idade Média usavam frequentemente definições mais “cristãs”, como a de Santo Agostinho: “Pecar é falar, agir ou desejar contra a lei eterna.” 3 Estando a lei divina acima da natureza, definir o pecado em oposição à lei divina parece fazer mais sentido realmente para um cristão. A razão seria obra de Deus e a infração das prescrições da razão seria como a infração das prescrições divinas.

O pecado é para um filósofo uma desobediência à razão, enquanto é para um teólogo uma desobediência a Deus. Mas na Idade Média, essas duas instâncias se confundem. Parece-me ser justamente nesse ponto que começa a nascer uma moral normativa, diferente da grega. Pois a razão humana, para poder servir de padrão moral na prática da vida cristã, precisa ser “informada” pela lei divina.

Para Aristóteles, o homem mau é apenas um ignorante. Todo mal nasceria de um erro de juízo. O bem, ao contrário, se liga a sucesso, a bem fazer, a fazer de modo belo e consciente. A virtude, esse bem fazer, é a condição de se levar uma vida feliz. A moral cabe ao homem: Deus não está interessado nela.

Já no platonismo, há mais semelhança com o cristianismo, pois existe uma ordem divina que domina a ordem da moralidade e a define: Saturno, constatando a incapacidade humana de governar com a autoridade conveniente, teria submetido as cidades a inteligências mais divinas que as nossas, criando os Daimons, que seriam guias divinos que carregamos conosco, a parte imortal do nosso ser. Mas é uma semelhança tênue, pois o universo de Platão está inteiramente impregnado de inteligibilidade. Há vários Deuses organizadores do todo, mas nenhum deles foi o seu criador, que poderia guardar consigo os mistérios e ininteligibilidade do mundo.

Santo Agostinho escreveu que “A lei eterna é a razão divina, o a vontade de Deus, ordenando conservar a ordem natural e proibindo perturbá-la.” Mas se as idéias de Deus são Deus, a lei divina, por se identificar à razão de Deus, também seria idêntica a Deus, “cuja razão governa e move todas as coisas como ela as criou” 4. Aqui nota-se uma das grandes diferenças entre o cristianismo e o platonismo: a lei é o Deus criador no cristianismo, que move e dirige para seu fim todas as coisas criadas.

Assim, o pecado seria ir diretamente contra Deus: opondo a vontade Divina à revolta de uma vontade humana. O pecado faz do homem um adversário de Deus e um rebelde. Muitas vezes, sua causa é a ignorância ou a fraqueza. Mas quando ele é a negação de Deus com conhecimento de causa é bem mais grave, pois assim fazendo o homem se exclui da glória a que era destinado. Deus permanece na perfeição da sua beatitude, mas o homem perde a dele, pois é ela o efeito de Deus a que o pecador “se opõe e destrói pela revolta de sua vontade” 5.

Ver essa lei diretamente, então, seria como ver Deus. Algo impossível para o ser humano na concepção cristã. A lei se mostraria como uma “irradiação de luz divina” 6 em nossos corações e consciências. Mas eis aí a questão: os homens podem se recusar a perceber seus corações e consciências, como foi o caso do povo de Israel, onde o próprio Deus teve que revelar por escrito suas leis nos 10 mandamentos. Penso que esse caso específico abriu caminho para a absurda normatização cristã da moral que se seguiu a Santo Agostinho, contrária às próprias bases da teologia cristã. Seríamos nós um povo cada vez mais distante de nossos corações? Ou a necessidade de controle e manutenção do poder por parte das Igrejas cresceu tanto que suas próprias bases filosóficas foram postas de lado?



REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

GILSON, Étienne. O espírito da filosofia medieval. Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2006.



--- Notas de Rodapé ---

1 São Tomás de Aquino, Sum. Theol., IIa-IIae, 145, 1, ad 2m.
2 Cícero, De inventhione retorica. II, 53.
3 Santo Agostinho, Cont. Faustum Manich., XXII, 27, Patr. Lat. T.42, col. 418.
4 Santo Agostinho, De civ. Dei, IX, 22, Patr. Lat., t. 41, col. 274.
5 São Boaventura, In Il Sent., 35, 1, 3, Resp., ed. Quarascchi, t. II, p. 827.
6 São Tomás de Aquino, Sum. Theol., Ia-IIae, 93, 2, Resp.



(Fabio Rocha)

A REFUTAÇÃO DA TESE DE QUE SENSAÇÃO É CONHECIMENTO NO TEETETO DE PLATÃO

Podemos dividir em 4 partes a refutação da tese de Protágoras de que sensação é conhecimento no texto (151d a 186e): auto-refutação (160e a 164e / 170a a 171d), argumento do futuro (177c a 179c), argumento da linguagem (179c a 183c) e refutação final (184b a 186e).


1. Auto-Refutação

Podemos considerar como um início de auto-refutação da tese o argumento de Sócrates de que se a verdade para cada indivíduo é o que ele alcança pela sensação, não pode ninguém além dele mesmo dizer que esta opinião pessoal é falsa. Asssim, ninguém pode ser considerado sábio ou não sábio em qualquer aspecto. Logo, não faria sentido, por exemplo, pagar para assistir às aulas do próprio Protágoras, sendo cada homem a medida de sua própria sabedoria.
A partir de 163d, Platão explora a questão tendo em vista o passado e as lembranças: se conhecimento é idêntico a sensação, ao perdermos a sensação de algo que já passou, teríamos que perder o conhecimento também, o que, obviamente, não acontece. Por exemplo: se fecharmos os olhos não perdemos imediatamente o conhecimento do que vimos no passado, o que mostra que sensação não pode ser considerada como algo idêntico a conhecimento.
Após uma defesa de Protágoras, a auto-refutação aparece em 170a, onde Sócrates afirma que a maioria das pessoas não acredita que o homem é a medida de todas as coisas, ou seja, que sensação é conhecimento. Isso pode ser percebido no fato de que a maioria dos homens prefere médicos a velejadores para tratar de suas feridas, por exemplo, mostrando que “os homens estão convencidos de haver entre eles sábios e ignorantes”. Assim sendo, seguindo a própria teoria de Protágoras, sendo a opinião de cada homem a verdade e a maioria dos homens não acreditando em seu princípio de que cada homem é a medida de sua própria sabedoria, “há mais razões para seu princípio não existir do que para existir”.
Mesmo que esqueçamos a questão da maioria, se apenas um homem tiver opinião contrária a de Protágoras, a tese se auto-refuta, pois diz que toda opinião seria conhecimento verdadeiro, inclusive aquela que nega a tese.
Cabe aqui uma visão mais crítica sobre o que pode ser uma redução de Protágoras a algo caricatural por parte de Platão, como nos parece ser feito mais tarde nesse mesmo texto com Heráclito: Será que podemos dizer que a frase “O homem é a medida de todas as coisas.” traz em si o pensamento de que o homem traz APENAS em si mesmo o critério decisivo de tudo? Indo além: será esta frase exatamente igual a “Conhecimento é percepção sensível.” e a “Todo conhecimento é percepção sensível.” e a “Todo conhecimento verdadeiro é percepção sensível.”? Deixo a questão em aberto neste trabalho, pois precisaríamos estudar diretamente os textos de Protágoras para tentar respondê-la melhor. Mas é perceptível a tendência neste texto de Platão (assim como na história da Filosofia) de reduzir pensadores anteriores a estereótipos deles mesmos, na busca de melhores argumentações para seus próprios pensamentos ou uma maior facilidade de se contar a história da Filosofia. O próprio Platão sofreu e sofre este mesmo processo, resumido como o grande separador do mundo sensível do mundo das idéias, ou ao ter seus mitos lidos literalmente, como se fossem sua percepção de realidade (apesar de todas as passagens em que o próprio autor afirma o oposto).


2. Argumento do futuro

Aqui Sócrates inicia falando da promulgação de leis de uma cidade qualquer, que deveriam ter como finalidade o bem comum no futuro. No entanto, há casos de cidades que erram, não alcançando esse bem no futuro, contrariando o pensamento de Protágoras de que não há homens mais sábios do que outros.
Ainda mais: se seguirmos a tese de Protágoras, ainda podemos pensar que no presente e no passado, a sensação pode realmente ser algo totalmente individual ou uma “verdade própria”, mas se pensarmos em problemas envolvendo o futuro como o da promulgação das leis de uma cidade visando algo melhor no futuro, fica mais difícil manter a interpretação de Protágoras. O exemplo e argumento do próprio Sócrates: “[...] nos preparativos de um banquete, a opinião do convidado desconhecedor da arte culinária valerá menos que a do cozinheiro, em matéria do tempero das iguarias.” Ou seja, para o resultado efetivo futuro do banquete, vale mais a opinião de um homem do que de outro.
Mas, novamente defendendo Protágoras, e aproveitando o mesmo exemplo,esta tese de Sócrates só me parece poder ser plenamente aceita, se considerarmos que há um critério universal, único, correto, fixo e padrão de apreciação de banquetes. No caso da cidade, se considerarmos que há um critério universal de bem comum. No caso do médico, se considerarmos que há um critério universal de saúde. E, particularmente, acho difícil identificar quaisquer desses critérios universais se levarmos em conta, por exemplo, a imensa variação de comportamentos e gostos humanos ao longo da história ou até mesmo em diferentes partes do planeta numa mesma época.
O ponto fundamental deste argumento consiste em mostrar que não se pode sustentar que qualquer opinião sobre eventos futuros é verdadeira, pois os eventos ainda não aconteceram de tal ou qual modo.


3. Argumento da linguagem

A partir de 179c, começa a crítica a Heráclito e seus sectários, como apologetas do devir. Aqui analisarei mais a fundo a questão do devir e do mobilismo absoluto heraclítico, com base nos fragmentos de Heráclito a que temos acesso hoje.
Fragmento 12: "Para os que entram nos mesmos rios, afluem sempre outras águas; mas do úmido exalam também os vapores."
Fragmento 49a: "No mesmo rio entramos e não entramos; somos e não somos."
Aparentemente, foi desses dois fragmentos que a tradição estabeleceu um estereótipo de Heráclito como mobilista absoluto, defensor de que tudo é devir e que o devir é absoluto. Mas, antes de analisar essa questão, precisamos responder outra nada banal: o que é o devir?
Platão separa o movimento em dois tipos: a translação ("[...] quando ela muda de lugar e também quando gira em torno do mesmo ponto [...]"), referindo-se a movimentos no espaço-tempo e a alteração, como mudança qualitativa ("[...] quando determinada coisa, parada no lugar em que está, vem a envelhecer ou de negra fica branca [...]"). Para Platão o devir de Heráclito seria relativo aos dois tipos de movimento. Essa questão é controversa. Particularmente, me parece que Heráclito trata do devir como alteração qualitativa e não movimento físico em seus fragmentos, mas Platão talvez tenha tido acesso a mais textos de Heráclito do que nós. Além disso, essa separação talvez não seja algo simples, se analisarmos com base na ciência atual: uma alteração de cor, por exemplo, não deve ser considerada como uma mudança espaço-temporal nos átomos da superfície de um objeto? Assim sendo, ela seria uma translação ou uma alteração? Será que, na contemporaneidade, considerando-se a química e a física quântica, podemos definir claramente os limites dessa separação platônica?
Outra abordagem da questão do devir para Heráclito (que me parece mais importante que a do Teeteto): ele trataria dos objetos que compõem a realidade ou das relações entre esses objetos? Se pensarmos que o mundo é algo pronto, dado, talvez a análise apenas dos objetos, a partir do puro Logos, nos baste. Mas Heráclito é anterior à separação Platônica de Logos e Mito. É ligado ao mistério e ao mito e consegue perceber o mostrar-se (e esconder-se) do real como experiência originária. Ele vê no fogo, por exemplo, muito mais que o fogo dado, banal, pronto, definido, esperado. Ao contemplar as chamas, Heráclito surpreende-se com o fogo, e esse processo onde a filosofia toca o mito faz com que se abra o "ver ontológico". Não se trata de compreender a essência metafísica do fogo como algo separado do fogo que se mostra, mas sim o seu aparecer originário, seu brotamento e morte constante mas novo a cada instante, seu crepitar, seu calor, seu brilho, todo o devir constante de relações com o corpo que o sente. O fogo, aliás, talvez seja a melhor metáfora para o fragmento que diz "Transformando-se, repousa." Sem tranformação, não há chamas. Onde não há transformação, o fogo já apagou.
Podemos, então, dizer que na concepção de devir há pelo menos dois "devires": um devir "ontológico", o da physis, que é o do vir-a-ser do que antes não era, e um devir dentro do plano do que já é, das coisas do mundo e das relações que percebemos através dos sentidos. Mas não parece haver uma divisão precisa entre esses dois "tipos" de devir.
Agora que consideramos a complexidade e dificuldade da questão do devir, voltemos à questão do mobilismo absoluto, em Heráclito:
Fragmento 1: "Com o Logos, porém, que é sempre, os homens se comportam como quem não compreende tanto antes como depois de já ter ouvido. Como efeito, tudo vem a ser conforme e de acordo como este Logos e, não obstante, eles parecem sem experiência nas experiências com palavras e obras, iguais às que levo à cabo, discernindo e elucidando, segundo o vigor, o modo em que se conduz cada coisa. Aos outros homens, porém, lhes fica encoberto tanto o que fazem acordados, como se lhes volta a encobrir o que fazem durante o sono."
Com o vigor da physis brotando nessa análise do real, Heráclito, já no seu fragmento primeiro, afirma que o Logos "é sempre", é tempo aión, sem início nem fim, diferente da dimensão do tempo de cronos. Considerando-se também o fragmento 84 ("Transformando-se, repousa."), o fragmento 30 ("O mundo, o mesmo em todos, nenhum dos deuses e nenhum dos homens o fez mas sempre foi, é e será, fogo sempre vivo, acendendo segundo a medida e segundo a medida apagando.") me parece impossível compartilhar a visão de muitos apologetas do devir radical de que para Heráclito tudo é devir e mudança, como que forçando um exagero na visão do movimento em Heráclito, do mesmo modo que o fazem com a estabilidade em Parmênides. Todos esses fragmentos tratam de um ponto em comum: um repouso na transformação, uma perenidade além do tempo cronológico, e uma continuidade, uma conjunção de antes e depois no fogo sempre vivo do mundo.
Outro fragmento que pode se interpretar como contrário ao devir absoluto é o famoso 50 ("Auscultando não a mim mas o Logos, é sábio concordar que tudo é um."), pois, neste trecho, temos um princípio constante e originário que unifica a totalidade, se conseguirmos percebê-la através do Logos. E esse um não se desgasta, não se corrói: o verbo usado é ser, não estar.
Além do real em suas manifestações múltiplas e que percebemos através desse espaço-tempo imediato, Heráclito percebe um real originário e uno, uma totalidade integrada, além do tempo cronos, que se esconde dos outros homens (os muitos que dormem, ou os "hoi-poloi", presos a visões particulares dos entes). Mas é interessante observarmos que Heráclito destaca também constâncias. A própria mudança, o devir, o novo, o instantâneo que brota a cada instante da physis numa nova configuração. Como podemos, então, concordar com o mobilismo absoluto como atribuição corrente feita ao pensamento de Heráclito, se há constância, para ele, até mesmo no próprio devir?
Até mesmo Platão parece apontar para uma situação impossível ao analisar mais detidamente essa hipótese de mobilismo absoluto no Teeteto (passagens 179d a 183c). Se até mesmo as sensações não possuem nada fixo, seria mais correto afirmar que algo não é visto do que é visto. Se conhecimento é sensação, o problema se estende ao conhecimento, ficando qualquer resposta à questão “o que é conhecimento?” igualmente justa, já que nada “é” e tudo “está”. Para Francis Conford, a leitura radical de Heráclito nessa passagem do Teeteto leva ao absurdo. Se tudo se move, nem a linguagem seria possível, se tudo se transforma o tempo todo. Imaginemos como nos fazer entender sem nada fixo: o som dos fonemas, o sentido das palavras etc. É com isso que brinca Sócrates (183b), alfinetando os apologetas do devir total e absoluto, ao responder a Teodoro, que havia dito que Sócrates tinha razão dessa forma: "Menos, Teodoro, no ter eu dito: Assim e Não assim. Pois nunca devemos valer-nos da expressão Assim, visto que esse Assim já não seria movimento. [...]"


4. Refutação final

A refutação final à tese de Protágoras inicia-se com a constatação de que a percepção sensível se dá por meio dos órgãos e não com eles. Essa exigência de precisão nas palavras por parte de Sócrates visa identificar um “princípio percebedor” no corpo, para os vários sentidos, que consegue, inclusive, analisar separadamente cada sensação (por exemplo, cor e sabor de uma fruta). Estaria na alma (ou na razão) esse princípio, e não em algum órgão particular. Assim, “[...] algumas coisas a alma investiga por si mesma, e outras por meio das diferentes faculdades do corpo [...] ” (185e). Através da alma (razão) é que se pode comparar as propriedades das coisas, usando conceitos como maior e menor, igualdade, semelhança etc. Assim, os homens captam impressões pelo corpo, mas para relacioná-las entre si ou chegar à sua essência, precisa-se da alma (razão). E a verdade sobre uma coisa só seria alcançada através da essência dessa coisa, no raciocínio a seu respeito. Aí, sim, se encontraria o conhecimento, e não nas impressões primeiras dos sentidos, que qualquer animal além do homem também possui. Essas impressões diretas dos sentidos, Sócrates chama de sensações, separando-as do conhecimento que se obtém através da alma (razão). Refuta, assim, mais uma vez, a igualdade entre conhecimento e sensação.


Bibliografia:

PLATÃO. Diálogos.Volume IX: Teeteto – Crátilo. Pará: Universidade Federal do Pará, 1973.

OS PENSADORES ORIGINÁRIOS. Anaximandro, Parmênides, Heráclito. Trad. Emmanuel Carneiro Leão e Sérgio Wrublewiski. Petrópolis: Vozes, 1991.



(Fabio Rocha)

DE HERÁCLITO A NIETZSCHE

Se pensarmos em ligações entre Heráclito e Nietzsche, muito possivelmente o primeiro conceito de que nos lembraremos é o do devir. Mas o que é devir?

Platão, no Teeteto (passagens 181c a 181e), separa o movimento de uma coisa em dois tipos: a translação e a alteração. Translação referindo-se a movimentos no espaço-tempo de uma coisa. ("[...] quando ela muda de lugar e também quando gira em torno do mesmo ponto [...]"). Alteração, como mudança qualitativa ("[...] quando determinada coisa, parada no lugar em que está, vem a envelhecer ou de negra fica branca [...]"). Para Platão o devir de Heráclito seria relativo a esses dois tipos de movimento. Essa questão é controversa. Particularmente, me parece que Heráclito trata do devir como alteração qualitativa e não movimento físico-espacial em seus fragmentos, mas Platão talvez tenha tido acesso a mais textos de Heráclito do que nós. Além disso, essa separação talvez não seja algo tão simples hoje em dia, se a analisarmos com base na ciência atual: uma alteração de cor, por exemplo, de preto para branco, não deve ser considerada como uma mudança espaço-temporal, já que ela consiste num movimento espacial diferente nos átomos da superfície do objeto? Assim sendo, ela seria uma translação ou uma alteração? Será que, na contemporaneidade, considerando-se a química e a física quântica, podemos definir claramente os limites dessa separação platônica entre movimentos no espaço e mudanças qualitativas?

Outra abordagem da questão do devir para Heráclito (que me parece mais importante, inclusive, que a anterior feita no Teeteto): ele trataria dos objetos que compõem a realidade ou das relações entre esses objetos? Se pensarmos que o mundo é algo pronto, dado, talvez a análise apenas dos objetos, a partir do puro Logos, nos baste. Mas Heráclito é anterior à separação Platônica de Logos e Mito. É ligado ao mistério e ao mito e consegue perceber o mostrar-se (e esconder-se) do real como experiência originária. Ele vê no fogo, por exemplo, muito mais que o fogo dado, banal, pronto, definido, esperado. Ao contemplar as chamas, Heráclito surpreende-se com o fogo, e esse processo onde a filosofia toca o mito faz com que se abra o que Aristóteles chamou de "ver ontológico". Não se trata de compreender a essência metafísica do fogo como algo separado do fogo que se mostra, mas sim o seu aparecer originário, seu brotamento e morte constante, mas novo a cada instante, seu crepitar, seu calor, seu brilho, todo o devir de relações com o corpo que o sente. O fogo, aliás, talvez seja a melhor metáfora para o fragmento heraclítico que diz "Transformando-se, repousa." Sem tranformação, não há chamas. Onde não há transformação, o fogo já apagou.

Para Nietzsche, a questão parece ter início já no seu primeiro livro, publicado em 1872, "O Nascimento da Tragédia". Nele, podemos pensar em dois tipos de devir, cada um ligado a um dos "impulsos artísticos da natureza" de que ele trata. Ao Dionisíaco, estaria ligado o devir da physis grega, o brotamento originário da vida, o nascimento eterno de cada instante, o vir-a-ser do que antes não era, partindo do que ele chama de "Uno-primordial" e tranformando-se em coisas, realidade. Ao Apolíneo, podemos ligar o devir das relações e das configurações das coisas individuais que apreendemos através dos sentidos, do "véu de Maia". Mas as coisas que nascem, ciclicamente, morrem. Assim, o devir se confunde nos dois impulsos opostos e complementares Apolíneo e Dionisíaco, pois todas as várias individuações apolíneas que nascem acabam retornando com seu fim para o Dioniso do Uno-primordial num movimento eterno. O que nos leva de volta a Heráclito, em seu fragmento 8, que diz: "O contrário em tensão é convergente; da divergência dos contrários, a mais bela harmonia".

É notável a influência dessa percepção do real afirmadora do devir em Nietzsche. A "vontade de poder", consiste numa teia de forças (ou relações ou elementos) em eterna luta, onde que a cada instante há uma síntese de vários elementos ao poder unificador de uma perspectiva vitoriosa (que seria a perspeciva que abarca o maior número de elementos). E essa vitória dura apenas um instante, sendo o próximo instante um reinício do zero, sem relação de causalidade com o anterior. É uma visão nietzscheana totalmente diferente de uma realidade definitiva, dada, pronta e estável. Vale destacar que a vontade de poder não é transcendente ou imanente, mas o elemento que compõe toda a realidade. Do mesmo modo que as cores granuladas ao se olhar de perto um quadro impressionista o formam. E, para Nietzsche, o devir contribui com a vontade de poder, por trazer incessantemente novos elementos para entrarem em conflito, que serão integrados ou não na teia de forças que compõe cada instante.

Podemos, então, dizer que em ambos os pensadores, há pelo menos dois "devires": um devir "ontológico", o da physis, que é o do vir-a-ser do que antes não era, e um devir dentro do plano do que já é, das coisas do mundo e das relações que percebemos através dos sentidos. Mas não parece haver uma divisão precisa entre esses dois "tipos" de devir.


Agora que consideramos a complexidade e dificuldade da questão do devir, vamos à questão do mobilismo absoluto, em Heráclito. Para Nietzsche, no seu "A Filosofia na Idade Trágica dos Gregos", Heráclito é colocado como o oposto extremo de Parmênides, como fogo e gelo.Nietzsche afirma que Heráclito nega o ser em geral: tudo seria estar... A tradição parece acompanhar essa interpretação de Nietzsche. Muito possivelmente ela teve como uma de suas origens a leitura apressada dos famosos fragmentos 12 e 49a de Heráclito:

Fragmento 12: "Para os que entram nos mesmos rios, afluem sempre outras águas; mas do úmido exalam também os vapores."

Fragmento 49a: "No mesmo rio entramos e não entramos; somos e não somos."

Porém, devemos considerar também outros fragmentos de Heráclitos, tais como:

Fragmento 1: "Com o Logos, porém, que é sempre, os homens se comportam como quem não compreende tanto antes como depois de já ter ouvido. Como efeito, tudo vem a ser conforme e de acordo como este Logos e, não obstante, eles parecem sem experiência nas experiências com palavras e obras, iguais às que levo à cabo, discernindo e elucidando, segundo o vigor, o modo em que se conduz cada coisa. Aos outros homens, porém, lhes fica encoberto tanto o que fazem acordados, como se lhes volta a encobrir o que fazem durante o sono."

Heráclito afirma, já no seu fragmento primeiro, que o Logos "é sempre", é tempo aión, sem início nem fim, diferente da dimensão do tempo de cronos. Ou seja, já fala aí de uma permanência, negando um devir absolutizado.

Considerando-se também o fragmento 84 ("Transformando-se, repousa."), percebemos um repouso no próprio movimento, ou seja, uma constância, algo perene, em repouso.

Fragmento 30 ("O mundo, o mesmo em todos, nenhum dos deuses e nenhum dos homens o fez, mas sempre foi, é e será, fogo sempre vivo, acendendo segundo a medida e segundo a medida apagando.") Aqui, há uma noção de eternidade estável, de perenidade constante, de algo que sempre foi, é e será como o fogo inapagável, que mesmo em eterna transformação a cada crepitar, a cada variação de suas chamas dançantes, continua sendo fogo.

Outro fragmento Heraclítico que se pode interpretar como contrário ao devir absoluto é o famoso 50 ("Auscultando não a mim mas o Logos, é sábio concordar que tudo é um."). Neste trecho, notamos um princípio constante e originário que unifica a totalidade, se conseguirmos percebê-la através do Logos. E esse um não se desgasta, não se corrói: o verbo usado é ser, não estar.

Assim, me parece impossível compartilhar a visão de muitos apologetas do devir radical de que para Heráclito tudo é devir e mudança, como que forçando um exagero, uma radicalismo do movimento em Heráclito, do mesmo modo que o fazem com a estabilidade em Parmênides. Se lermos mais atentamente, todos esses fragmentos tratam de um ponto em comum: um repouso na transformação, uma perenidade além do tempo cronológico, e uma continuidade, uma conjunção de antes e depois no fogo sempre vivo do mundo.


Até mesmo Platão parece apontar para uma situação impossível ao analisar mais detidamente a hipótese de mobilismo absoluto no Teeteto (passagens 179d a 183c). Para Francis Conford, a leitura radical de Heráclito nessa passagem do Teeteto leva ao absurdo. Nem a linguagem seria possível, se tudo se transforma o tempo todo. Imaginemos como nos fazer entender sem nada fixo: o som dos fonemas, o sentido das palavras etc. É com isso que brinca Sócrates (em 183b), alfinetando os apologetas do devir total e absoluto, ao responder a Teodoro, que havia dito que Sócrates tinha razão dessa forma: "Menos, Teodoro, no ter eu dito: Assim e Não assim. Pois nunca devemos valer-nos da expressão Assim, visto que esse Assim já não seria movimento. [...]"


Assim, podemos perceber que Heráclito não é um apologeta do devir radical. Heráclito fala de um real originário e uno, uma totalidade integrada além do real em suas manifestações múltiplas que percebemos através desse espaço-tempo imediato, além do tempo cronos, que se esconde dos outros homens (os muitos que dormem, ou os "hoi-poloi", presos a visões particulares dos entes). Devemos observar que Heráclito destaca também uma constância no próprio devir: o que brota a cada instante da physis numa nova configuração, continuamente.

(Fabio Rocha)