A FILOSOFIA MEDIEVAL E A MORAL CRISTÃ

"O homem correto age pela lei interna, e não por mandamentos externos. Bebe as águas da Fonte, e não dos canais." – Lao Tse (Aforismos e trechos do Tao Te King)


Na Idade Média, o pensamento filosófico se tornou dependente da teologia. É nessa época que o Cristianismo se torna a religião oficial do império Romano e começa a se buscar fundamentos filosóficos para essa religião na Grécia Antiga.

Da Filosofia imanente do Estoicismo, de sua lei ética que tem como base a busca da felicidade, de sua negação da metafísica e de qualquer possibilidade de transcendência, os medievais extraem o conceito de NATUREZA como lei eterna, transformando-a em DEUS, criador de tudo. É nessa época que nasce também o conceito de pessoa, retirado do Evangelho.

Os neo-platônicos afirmavam que “Tudo emana do uno e tudo retorna ao uno.” (Plotino), o que pode ser interpretado como uma visão de toda a realidade como divina. Os cristãos não podem aceitar essa teoria, pois o mal seria também divino, e a idéia da criação divina cristã a partir do nada também seria divergente. Porém o modelo neo-platônico de Uno (Logos, fonte de emanação) / Inteligência (Nous) / Alma do Mundo (Psyché) formando um mundo superior, eterno e originário, separado do nosso mundo “Sub-Lunar” (humano, animal, vegetal, mineral), regido pelo tempo cronológico, pela finitude, imperfeição e composição de elementos, servirá de base para o Cristianismo.

Santo Agostinho, como os neo-platônicos, é pré-medieval. Ele é o fundador filosófico do cristianismo com arcabouço platônico. Sua ética terá como base o amor. Tudo poderia ser feito se tivesse como base o amor. A partir daqui é que pretendo me aprofundar na lei e moralidade cristã, com a intenção de destacar como a filosofia cristã, que teve como base a filosofia não-normativa grega (Platão, Aristóteles etc.) e seus primeiros passos morais com a liberdade total do amor em Santo Agostinho se tornou o que temos hoje.

Os gregos ligavam o bem ao belo, à justa medida. Uma ação nobre, considerada boa, bela e justa, poderia ser matar um inimigo em batalha, por exemplo. Nisso consistia uma moral não-normativa: cada ação não teria nela mesma algo de bom ou ruim, dependendo sempre da situação. Não havia uma norma geral, como no Cristianismo há o “Não matarás”. Mas tentemos analisar essa mudança radical desde suas origens.

Os moralistas cristãos procuraram primeiramente vincular o valor moral ao ato voluntário, que seria sua base. Reuniram os conceitos de beleza e honra numa noção mais abrangente, a de bem. Vincularam o bem a um princípio transcendente – a alma, que ganha importância em relação à pura virtude 1. Assim, a virtude nela mesma não é mais o bem supremo que era para os gregos, tendo importância agora apenas por conduzir o homem para Deus.

A partir daqui, podemos analisar melhor o surgimento da noção de pecado, que seria, antes de mais nada, um ato vicioso. E o vício é o oposto da virtude. Para Aristóteles, a virtude é um hábito, uma disposição adquirida e duradoura, que permite àquele que a possui agir em conformidade com a sua própria natureza. Assim, o agir moralmente bem teve como base helênica o agir espontaneamente conforme sua própria natureza. O pecado é, então, um ato contrário à natureza de quem o comete, é mau, é o resultado de um vício (contrário da virtude como perfeição). Assim, a base Aristotélica é mantida por São Tomás de Aquino.

Mas o que seria a natureza? Sendo a razão o que confere a nossa natureza seu caráter humano, a virtude e o bem moral que se harmonizem com nossa natureza devem se harmonizar, necessariamente, com nossa razão. Assim, o mal moral, o pecado e o vício passam a poder ser concebidos como falta de racionalidade no ato ou no costume. Tal como formulou Cícero, em sua definição de moralidade: “O costume de agir de acordo com o que querem a razão e a natureza”. 2

Essa definição parece insuficiente para um cristão, já que não fala de Deus nem das relações entre vontade humana e divina. Por isso, padres e teólogos da Idade Média usavam frequentemente definições mais “cristãs”, como a de Santo Agostinho: “Pecar é falar, agir ou desejar contra a lei eterna.” 3 Estando a lei divina acima da natureza, definir o pecado em oposição à lei divina parece fazer mais sentido realmente para um cristão. A razão seria obra de Deus e a infração das prescrições da razão seria como a infração das prescrições divinas.

O pecado é para um filósofo uma desobediência à razão, enquanto é para um teólogo uma desobediência a Deus. Mas na Idade Média, essas duas instâncias se confundem. Parece-me ser justamente nesse ponto que começa a nascer uma moral normativa, diferente da grega. Pois a razão humana, para poder servir de padrão moral na prática da vida cristã, precisa ser “informada” pela lei divina.

Para Aristóteles, o homem mau é apenas um ignorante. Todo mal nasceria de um erro de juízo. O bem, ao contrário, se liga a sucesso, a bem fazer, a fazer de modo belo e consciente. A virtude, esse bem fazer, é a condição de se levar uma vida feliz. A moral cabe ao homem: Deus não está interessado nela.

Já no platonismo, há mais semelhança com o cristianismo, pois existe uma ordem divina que domina a ordem da moralidade e a define: Saturno, constatando a incapacidade humana de governar com a autoridade conveniente, teria submetido as cidades a inteligências mais divinas que as nossas, criando os Daimons, que seriam guias divinos que carregamos conosco, a parte imortal do nosso ser. Mas é uma semelhança tênue, pois o universo de Platão está inteiramente impregnado de inteligibilidade. Há vários Deuses organizadores do todo, mas nenhum deles foi o seu criador, que poderia guardar consigo os mistérios e ininteligibilidade do mundo.

Santo Agostinho escreveu que “A lei eterna é a razão divina, o a vontade de Deus, ordenando conservar a ordem natural e proibindo perturbá-la.” Mas se as idéias de Deus são Deus, a lei divina, por se identificar à razão de Deus, também seria idêntica a Deus, “cuja razão governa e move todas as coisas como ela as criou” 4. Aqui nota-se uma das grandes diferenças entre o cristianismo e o platonismo: a lei é o Deus criador no cristianismo, que move e dirige para seu fim todas as coisas criadas.

Assim, o pecado seria ir diretamente contra Deus: opondo a vontade Divina à revolta de uma vontade humana. O pecado faz do homem um adversário de Deus e um rebelde. Muitas vezes, sua causa é a ignorância ou a fraqueza. Mas quando ele é a negação de Deus com conhecimento de causa é bem mais grave, pois assim fazendo o homem se exclui da glória a que era destinado. Deus permanece na perfeição da sua beatitude, mas o homem perde a dele, pois é ela o efeito de Deus a que o pecador “se opõe e destrói pela revolta de sua vontade” 5.

Ver essa lei diretamente, então, seria como ver Deus. Algo impossível para o ser humano na concepção cristã. A lei se mostraria como uma “irradiação de luz divina” 6 em nossos corações e consciências. Mas eis aí a questão: os homens podem se recusar a perceber seus corações e consciências, como foi o caso do povo de Israel, onde o próprio Deus teve que revelar por escrito suas leis nos 10 mandamentos. Penso que esse caso específico abriu caminho para a absurda normatização cristã da moral que se seguiu a Santo Agostinho, contrária às próprias bases da teologia cristã. Seríamos nós um povo cada vez mais distante de nossos corações? Ou a necessidade de controle e manutenção do poder por parte das Igrejas cresceu tanto que suas próprias bases filosóficas foram postas de lado?



REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

GILSON, Étienne. O espírito da filosofia medieval. Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2006.



--- Notas de Rodapé ---

1 São Tomás de Aquino, Sum. Theol., IIa-IIae, 145, 1, ad 2m.
2 Cícero, De inventhione retorica. II, 53.
3 Santo Agostinho, Cont. Faustum Manich., XXII, 27, Patr. Lat. T.42, col. 418.
4 Santo Agostinho, De civ. Dei, IX, 22, Patr. Lat., t. 41, col. 274.
5 São Boaventura, In Il Sent., 35, 1, 3, Resp., ed. Quarascchi, t. II, p. 827.
6 São Tomás de Aquino, Sum. Theol., Ia-IIae, 93, 2, Resp.



(Fabio Rocha)

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