A interpretação dos sonhos de forma prática na clínica contemporânea

A interpretação dos sonhos de forma prática na clínica contemporânea - Fabio Rocha


Percebendo a distância entre a realidade da clínica, como paciente há 30 anos e também como psicanalista, me instiguei a escrever esse texto, complementando este post sobre sonhos.

Precisamos debater isso e entender porque houve quase um bloqueio na transmissão da Psicanálise no tocante à interpretação dos sonhos pela análise de suas partes, sendo uma técnica muito pouco utilizada em profundidade na clínica contemporânea. Talvez isso tenha ocorrido pelo tempo demandado para uma decomposição de cada símbolo exposto no sonho... Ou pela energia demandada por um trabalho assim. Um analista com muitos pacientes simplesmente não aguentaria trabalhar tão a fundo tantos conteúdos tão complexos sem se perder totalmente. (Por isso, acredito ser melhor trabalhar priorizando a qualidade, com poucos pacientes, na Psicanálise). Zimerman, porém, vê isso como uma evolução natural na Psicanálise: "Na atualidade, as coisas não se passam mais assim, pois o levantamento arqueológico cedeu lugar a uma valorização do sonho como um importante método de comunicação, de sorte que o analista está mais atento ao 'todo.' " (Manual de Técnica Psicanalítica. p. 426)

Mesmo tendo Freud chamado os sonhos de "via régia (principal) para o inconsciente", deixando claro que essa seria uma das técnicas mais importante da Psicanálise. Mesmo com Jung reforçando essa importância, apontando o bom hábito de anotar os sonhos em detalhes logo ao despertar (antes da censura / barreira egóica poder começar a agir! Quanto mais cedo se anotar ou gravar em detalhes os sonhos, melhor, pois isso vai se perdendo com o tempo pela ação do ego ao longo do dia) como uma forma acessível a todos de ter um maior contato com seu inconsciente. E de lembrar cada vez mais de mais sonhos em detalhes.

Quase nenhum psicanalista, hoje em dia, utiliza o tempo da sessão para analisar - decompor detalhadamente - os elementos de cada sonho de cada um dos analisandos, como propunha Freud. Reforço que Freud não recomendava analisar o sonho como um todo, menos ainda seu significado na cultura, ou o significado geral de seus elementos, conforme o senso comum. Há até livros sobre o significado “correto” de cada sonho ou objeto sonhado, do tipo “o mar significa sentimento”, que não faz nenhum sentido do ponto de vista da Psicanálise. Cada sonho, cada paciente, cada elemento do sonho, varia! E o que importa é seu significado para aquele analisando, nunca um significado geral. Outro detalhe importante que Freud nos aponta é que a atenção do analista deve estar nas palavras. Não nas imagens trazidas pelo analisando. Todo o estímulo do psicanalista deve ser voltar mais para as palavras usadas pelo analisando. Isso nada mais é do que a técnica de atenção flutuante proposta por Freud para toda análise!

Vou exemplificar com o mínimo de teorização possível, para que fique fácil de entender o que claramente falta hoje na clínica psicanalítica e proponho um debate sobre isso (podemos conversar mais nos comentários).

Dois conceitos básicos que ocorrem no que Freud chamou de "elaboração onírica": a verdade que o ego não suporta é expressa de maneira disfarçada no sonho, onde há DESLOCAMENTO (exemplo: sonhar com um cálice, como o da música de Chico Buarque, para não aparecer diretamente a palavra "cale-se", que o ego por qualquer razão não "quer ver") e CONDENSAÇÃO (A condensação é quando deslocamentos se fundem / fusionam / condensam. Exemplo: quando se sonha com uma pessoa, mas ela parece ter o aspecto de outra e estar vestida tal como uma terceira pessoa, isso pode ser uma condensação das três pessoas).

Reforçando: há deslocamento e condensação. Então, o papel do psicanalista é ajudar a decompor (isso é que é analisar algo, decompor em partes menores) algo condensado pelo inconsciente no conteúdo manifesto do sonho (sem desconsiderar os deslocamentos) em diversos elementos oníricos, que devem ser amplamente analisados.

Exemplos de apenas UM sonho de UM analisando decomposto (e ainda com muito mais coisa a analisar!): 


SONHO:

- "tornado na casa da avó" - finitude da avó, do passado, da infância. lembrança da primeira coisa que vem à mente: a frase "o vento leva". outra lembrança livre que apareceu: o analisando brincando com folhas e fingindo voar na casa da mesma avó. outro aspecto do símbolo do vento: "como segurar o vento?" - o inevitável.

- "a casa caindo em ruínas lentamente" - parecendo um filme, primeira imagem ligada a palavra casa: "proteção". outro ligação: "medo de crescer" (crescer seria perder alguma proteção para este analisando) - outro deslocamento para uma simbologia da casa sendo destruída - indo pelos ares.

- "tento segurar o telhado" - esforço de reter algo que não dá. como momentos bons. lembrança da casa como local bom na infância. esforço sempre vão. outro símbolo para telhado, primeira palavra de que o analisando lembrou: "proteção"

-  "mas morro" - a finitude tocando tudo, aqui não mais apenas a infância, mas a própria vida. de forma incontrolável. outro deslocamento que apareceu, pela repetição da palavra "morro". Não mais como verbo. Morro como substantivo, sinônimo de "colina" ou "monte". deslocamento possível (talvez o mais belo deste sonho) de Moisés recebendo as tábuas da lei no monte Sinai. religião. reconexão consigo mesmo.

- "e estranhamente fico bem depois de morto" - primeira palavra que veio à mente do analisando: "relaxar". entrega total quando nada mais há a perder. desistir. deixar ir. o relaxamento maior é a morte. outra: medo de perder para a morte a última avó viva do analisando. o estranhamento era: "morrendo eu não deveria estar sofrendo? não deveria estar preocupado? que estranho eu aqui bem." (após uma reconexão consigo mesmo) 

OBS.: Este analisando estava numa fase da vida (até mesmo pela ajuda da psicanálise e de outras terapias) onde se sentia "se encontrando", se reconectando mais com seu desejo, incorporando e aceitando melhor traumas do passado e se permitindo conhecer, inclusive, novas práticas religiosas. Notem quanto material condensado e deslocado em apenas um sonho.