Esse trabalho visa analisar o conceito de eterno retorno de Nietzsche, que, aliás, ele mesmo considerava como seu pensamento mais profundo, e nunca foi finalizado em vida. Abordaremos as passagens "Da redenção" e "Da visão e do enigma" do livro "Assim falou Zaratustra".
(Outros trechos nietzscheanos que tratam do eterno retorno: "O convalescente", "Os sete selos" ainda no "Assim falou Zaratustra"; aforismo 341 do "A gaia ciência"; aforismo 56 do "Além do bem e do mal"; e trechos dos fragmentos póstumos, que podem ser encontrados no livro "Nietzsche" da coleção "Os Pensadores", da Abril Cultural.)
Parte 1 - DA REDENÇÃO
Aqui Zaratustra, cercado de aleijados e mendigos, numa clara referência a Jesus Cristo. Quando lhe falam para que os curasse, ele responde: "Se ao corcunda tiramos a corcunda, riramos-lhe o espírito." Ou seja, o espírito da gravidade, a carga, o peso do "Tu deves" que o camelo aceita (e pede mais) nas três transformações, não deve ser retirado por alguém exterior. Acredito que aqui, Nietzsche está ressaltando a importância do próprio caminhante fazer seu caminho ao caminhar, e também da aceitação da dor individual como fator de fortalecimento, de constituição de cada indivíduo: "E, se ao cego se dá a vista, vê ele demasiadas coisas ruins na terra: a tal ponto que amaldiçoa aquele que o sarou." Essa passagem está em harmonia com o aforismo 19 da terceira parte da "Genealogia da Moral", que fala do "amor ao próximo" como também uma forma de vontade de poder, pois há uma alegria em causar alegria, "felicidade da 'pequena superioridade', que acompanha todo ato de beneficiar, servir, ajudar [...]"
Logo depois, Zaratustra trata da falta de unidade artística nas pessoas, sua fragmentação ("A este falta um olho, e àquele, uma orelha[...]") ou especialização excessiva ("Isso aí é uma orelha, uma orelha grande como um homem!"), numa clara crítica ao músico Richard Wagner.
Então, Zaratustra entra no tema temporal: "E se fogem do presente para o passado, sempre meus olhos encontram a mesma coisa: fragmentos e membros avulsos e horrendos acasos - mas não homens! O presente e o passado na terra - ah, meus amigos, é isso, para mim, o mais insuportável; e não saberia viver, se eu não fosse também, um vidente daquilo que deve vir." Zaratustra vê o homem como uma ponte para o super-homem. Essa é sua motivação. E o passado é algo a ser "redimido": "Transformar todo 'Foi assim' em um 'Assim eu o quis!'[...]". Afirmar todo o passado, de forma ativa e não reativa, isso é o que Zaratustra propõe. Olhar sobre nossa própria história e a história da humanidade como algo que foi do nosso desejo, nossa vontade criadora, que nos torna o que somos... E assim unificar passado e futuro no presente, "Juntar e compor em unidade o que é fragmento e enigma e horrendo acaso." O "foi assim" nos deixa impotentes espectadores passivos em relação ao passado, potenciais vítimas do niilismo, o grande cansaço. "O querer liberta." Nessa "reconciliação com o tempo", podemos vislumbrar já o eterno retorno, misturando e unindo passado e futuro: "Assim eu o quis! Assim hei de querê-lo".
Parte 2 - DA VISÃO E DO ENIGMA
Essa passagem me parece particularmente interessante por demonstrar algum medo e paralisação de Zaratustra frente ao pensamento mais profundo de Nietzsche, o eterno retorno, alcançado após longa e árdua caminhada: "A subir - a despeito do espírito que o puxava para baixo, para o abismo, o espírito de gravidade, meu demônio e mortal inimigo. A subir, muito embora ele estivesse sentado nas minhas costas, meio anão, meio toupeira; aleijado, aleijador; pingando chumbo em meus ouvidos e pensamentos como gotas de chumbo no meu cérebro." Vejo nessa linda metáfora uma luta pela qual muitas pessoas passam diariamente, uma busca por pensamentos elevados, enquanto a realidade nos distrai, nos enche com o peso das preocupações com a sobrevivência e de "deveres" que lutamos para não aceitar como nossos. O peso do "Tu deves..."
Só quando Zaratustra se livra, vence esse anão, é que chega ao eterno retorno: "Mas a coragem é o melhor matador; mata, ainda, a morte, porque diz: 'Era isso a vida? Pois muito bem! Outra vez!'." Essa é uma postura positiva, afirmativa, dançarina, alegre de alguém que aceitaria um eterno retorno de sua própria vida se repetindo para sempre. Como um Sísifo sorridente a cada subida da pedra ao alto da montanha. Notem a importância que damos a cada pequeno ato e escolha do momento presente, se considerarmos que ele se repetirá pra sempre como fazemos no agora...
Ao mesmo tempo, Zaratustra nota o portal que estava a sua frente: "Olha esse portal, anão! Ele tem duas faces. Dois caminhos aqui se juntam; ninguém ainda os percorreu até o fim. Essa longa rua que leva para trás: dura uma eternidade. E aquela longa rua que leva para frente - é outra eternidade. Contradizem-se esses caminhos, dão com a cabeça um no outro: - e aqui, neste portal, é onde se juntam. Mas o nome do portal está escrito no alto: 'momento'." Assim é o tempo eterno de Nietzsche, infinito para trás (passado) e para a frente (futuro), porém sem ser circular. São caminhos retos. A repetição se dá pela configuração de cada instante, como resultado da luta de forças de cada momento, ter uma quantidade finita, enquanto o tempo é infinito para trás e para a frente. Assim, em algum momento, a configuração da luta de forças será exatamente igual a agora e, na minha perspectiva pessoal, escreverei novamente essa frase.
É aí que vem o medo a Zaratustra. "[...] Tinha medo dos meus próprios pensamentos." O luar do agora o leva a um luar do passado, a um assustador cão uivando para esse luar à meia-noite, arrepiado. Aqui sabemos de dados biográficos, que Nietzsche teve essa experiência real durante uma mudança de residência na sua infância. E surge a visão: "Vi um jovem pastor contorcer-se, sufocado, convulso, com o rosto transtornado, pois uma negra e pesada cobra pendia da sua boca." Zaratustra tenta arrancar a cobra com a mão sem sucesso e grita "Morde! Morde!". O pastor parece ser o próprio Zaratustra, e a pesada cobra negra o niilismo. Porém, por essa imagem de terror aparecer justamente no retorno à infância do autor, quero colocar em dúvida se não pode representar também o seu pai, pastor protestante que pregava sua fé através da palavra, podendo a pesada cobra saindo de sua garganta representar justamente isso. Nesse caso, a mordida na cobra representaria também o corte do próprio Nietzsche com a tradição cristã de sua família, uma morte e uma nova vida: "O pastor, porém, mordeu, como o grito lhe aconselhava [...] Não mais pastor, não mais homem - um ser transformado, translumbrado, que ria!"
BIBLIOGRAFIA:
NIETZSCHE, F. Assim falou zaratustra. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006.
____________. Genalogia da moral. São Paulo: Companhia da Letras, 2006.
(Fabio Rocha)
A MORTE NO FÉDON E NA GENEALOGIA DA MORAL
No primeiro capítulo de seu livro "Aprender a Viver", Luc Ferry defende que a filosofia tem em comum com as religiões a tentativa de se resolver a angústia pela consciência da finitude, que todo ser humano carrega consigo. O que Freud chamou de "pulsão de morte". Obviamente que os caminhos da filosofia e da religião para resolver essa angústia são bem distantes. A primeira tenta pela razão a segunda, pela fé. Sobre o tema da morte, Lucrécio, discípulo de Epicuro, diz (poema intitulado "Sobre a Natureza das Coisas"):
"É preciso, antes de tudo, expulsar esse medo do Aqueronte [o rio dos Infernos] que, penetrando até o fundo de nosso ser, envenena a vida humana, colore todas as coisas do negror da morte e não deixa subsistir nenhum prazer límpido e puro."
O estóico Epicteto complementa:
"Tens em mente - diz ele - que para o homem o princípio de todos os males, da baixeza, da covardia, é... o medo da morte? Exercita-te contra ela; que para isso tendam todas as tuas palavras, todos os teus estudos, todas as tuas leituras e saberás que é o único meio que os homens têm de se tornarem livres."
Luc Ferry fala também de Montaigne, de seu famoso adágio segundo o qual "filosofar é aprender a morrer" e de vários outros filósofos posteriores, mas se esquece do filósofo anterior a todos esses, dono original da idéia que filosofar é aprender a morrer, Sócrates.
Nesse trabalho, pretendemos analisar a questão da morte no diálogo "Fédon", de Platão, tentando um diálogo com a "Genealogia da Moral", de Nietzsche.
O diálogo "Fédon", já da maturidade de Platão, ocorre na época posterior ao julgamento de Sócrates, e anterior à sua execução com a cicuta. Seus discípulos o cercam nesses últimos instantes de vida, sofrendo muito, parecendo por todo o tempo não entender a mensagem principal de Sócrates: que a morte é uma escolha, já em vida, de quem é filósofo: "o exercício próprio dos filósofos não é precisamente libertar a alma e afastá-la do corpo?". (Alma é "psiqué" no original grego, "anima" em latim, e não devemos confundir com o sentido atual, cristão do termo. "Anima" significa aquilo que dá animação, pode ser traduzida também como "vida", por exemplo).
Pois bem, o que Sócrates quer dizer aqui? Eis o grande problema dos manuais de filosofia sobre o Fédon: tratar tudo de forma literal, e alma como o que chamamos hoje de espírito. Assim fazendo uma separação brutal entre corpo e alma já no texto grego, o que na verdade só houve, posteriormente, no pensamento moderno. Se tomarmos o sentido de alma como vida e tentarmos perceber as sutilezas do texto, poderemos interpretá-lo, talvez, melhor: o filósofo é aquele que se coloca numa posição além dos sentidos (corpo), podendo ver melhor, através da própria vida. O pensamento filosófico mais profundo necessita de um afastamento dos sentidos, do que Sócrates chama de corpo, e exige uma racionalidade mais abstrata e etérea. Nesses momentos, um som, uma visão ou qualquer experiência sensória atrapalha.
Para Platão, o corpo, ao mesmo tempo em que pode atrapalhar o pensamento filosófico, como distração dos sentidos, também está ligado a esse pensar. Há uma interdependência e uma diferença entre os planos da percepção e da inteligibilidade. Parmênides, em seu poema, já dizia que “o mesmo é pensar e ser”, e esse ser é ser compreensível. A percepção vem da inteligibilidade. É difícil para nós, contemporaneamente, com a herança deixada por Kant, fazer essa mudança na perspectiva do mundo, já que estamos habituados a ligar a inteligibilidade ao sujeito e não aos objetos. Mas, para Platão, a inteligibilidade de cada coisa está no ser dessa mesma coisa e não em nós. Logo, tudo o que percebemos através dos sentidos do nosso corpo não deve ser considerado como o “mais real e verdadeiro”. Não se deve ficar SATISFEITO, CONFORTÁVEL apenas com o que os sentidos nos trazem. Não deve bastar. É justamente essa a ilusão dos seres acorrentados no mito da caverna da sua “República”. A percepção imediata dos sentidos, as sombras na parede da caverna, não podem ser suficientes para se entender o real.
Já Nietzsche chama o corpo de “Grande Razão” no “Assim Falou Zaratustra” (“Dos desprezadores do corpo”). O que é essa grande razão? “O corpo é uma grande razão, uma multiplicidade com um único sentido, uma guerra e uma paz, um rebanho e um pastor.” Negação de qualquer coisa além, da metafísica. “A alma é apenas uma palavra para alguma coisa no corpo.” Negação da separação cartesiana entre espírito e corpo (que foi um dos grandes passos para que desprezássemos o corpo ao longo da história filosófica). “Eu sou corpo, por inteiro corpo e nada mais.” Tudo é o corpo. Podemos perceber também nessa “Grande Razão”, a presença de opostos (guerra versus paz, multiplicidade versus único sentido) e de tendências contrárias (rebanho versus pastor). Interdependência e diferença num conflito interno que, porém, segue um “único sentido”. Se pensarmos que as células de nossa pele, por exemplo, morrem e são totalmente substituídas a cada vinte e oito dias, não parece nada absurdo o pensamento de Nietzsche. Além disso, a ciência nunca conseguiu, até hoje, determinar com exatidão o lugar de nossa consciência no corpo. Nem a psicologia definir o que chamamos de “eu”. Para Nietzsche, o pensar é como um movimento do corpo... Ele mesmo gostava de longas caminhadas por bosques e montes para pensar. Enquanto nossas rotinas contemporâneas de estudo e trabalho, além da busca por conforto e segurança, nos deixam cada vez nos movendo menos (o que contribui para esse aumento da obesidade mundial), ou em movimentos que tendem a ser repetitivos, previsíveis, monótonos.
Mas então Nietzsche fala o oposto de Platão? Ele valoriza o corpo enquanto Platão valoriza a alma (o “Nous”)? Talvez não. Pois ao mesmo tempo em que o pensamento noético exige um “afastamento” dos sentidos corpóreos, é através desses mesmos sentidos que todos nós aprendemos, passo a passo, a elaborar qualquer tipo de raciocínio. Através do corpo é que aprendemos a linguagem, por exemplo...
Eis aqui mais uma sutileza que uma leitura literal (ou seria apressada?) de Sócrates deixa escapar. Há uma pressa na Academia em rotular e definir, para facilitar o enquadramento em sistemas estagnados que são passados por gerações e gerações de professores metódicos e superficiais, com palavras difíceis, para ouvidos poucos... Talvez se perca com isso muito mais do que nas diversas traduções pelas quais o texto original em grego passou.
Pois bem, nessa parte do trabalho, já podemos começar a perceber a ligação que há entre os opostos “morte” e “vida” no Fédon. O texto parece, aliás, de inspiração Heraclítica (para Heráclito, a harmonia nasce do conflito entre opostos), pois há sempre um jogo subterrâneo entre diversos opostos inseparáveis e complementares como o Yin e o Yang percorrendo todo o diálogo como pano de fundo: desregramento e temperança, Apolo e Dioniso, permanente e perecível, homem e Deus, corpo e alma, morte e vida etc.
Mas aprofundemos mais a questão do filósofo como homem mais próximo da morte. O que isso significa? Que estado é esse que o distanciamento dos sentidos pode proporcionar? Uma maior despreocupação com o que os "não-filósofos" chamam de “real”, distanciando-se das ilusões que os sentidos nos trazem. O filósofo quer a verdade e a exatidão. Não se trata de não experimentar nada através dos sentidos, mas sim de não bastar a experiência IMEDIATA!
Nesse sentido, podemos voltar a Nietzsche e achar semelhanças. Um pensamento tão profundo como o do eterno retorno, por exemplo, não se obtém através da pura experiência imediata de algum sentido. Mesmo tendo ele ocorrido a Nietzsche ao ver uma formação rochosa singular numa caminhada. Requer um mínimo momento que seja de reflexão e afastamento do mundo sensível.
Mas e a questão da morte na "Genealogia da Moral"? Primeiramente, acho válido termos uma visão geral da obra, que trata de uma pesquisa de Nietzsche da origem de nossos preconceitos morais, questionando se a moral seria algo positivo ou negativo para o homem. Ou seja, não apenas preocupado com a origem da moral, mas também - e principalmente - com o valor da mesma.
Para trilhar este caminho, Nietzsche sugere o autoconhecimento. Primeiramente, histórico: como podemos nos chamar "homens do conhecimento" se não conhecemos nem a nós mesmos, aceitando a moral padrão dogmática que nos é ensinada sem questionamentos? Valores como "não-egoísmo", abnegação, compaixão, sacrifício (muito idealizados por Schopenhauer, inclusive) acabaram sendo aceitos como padrão de comportamento pela sociedade. Nietzsche, ao contrário, viu neles "o grande perigo para a humanidade". Pois a partir dessa vontade que se volta "contra a vida", estamos a um passo da grande tentação ao nada (como a budista), às beiras do niilismo. Esses valores chamados "bons" seriam a negação de nossos verdadeiros instintos.
A compaixão, por exemplo, tão praticada (na teoria) pelos sacerdotes religiosos, para Nietzsche é uma forma de "envenenar a ferida" em vez de curá-la: a vida é também dor, e a dor fortalece. Aliviar a dor de outro é, então, torná-lo mais fraco, dependente e com menor capacidade de vencer qualquer dor por si mesmo.
"E se no 'bom' houvesse um sintoma regressivo, como um perigo, uma sedução, um veneno, um narcótico, mediante o qual o presente vivesse como que às expensas do futuro? Talvez de maneira mais cômoda, menos perigosa, mas também num estilo menor, mais baixo?... De modo que precisamente a moral seria o perigo entre os perigos?..." (Prólogo, p. 13)
O homem "bom" é o que aceita passivamente o rebanho, que não luta por um futuro melhor, que aceita a posição cômoda em sua poltrona e assiste passivamente a TV se maravilhando com o controle remoto, os perigos dos filmes, engordando com os gastos cada vez menores de energia de seu corpo e a maior oferta e variedade de alimentos, aceitando as mesmices dos jornais e novelas (e, com isso, a aparência de impossibilidade de se mudar qualquer coisa). Variações desse estilo de vida: esportes radicais. Saltar de pára-quedas, bungee jumping etc. Não seriam formas de atenuar a saudade humana de algum RISCO na vida? Será que algum risco de MORTE nos é necessário?
Na primeira dissertação, Nietzsche trata da inversão dos valores "bem" e "mal". O bom, originalmente, foi o forte, que, justamente por sua força, criava e ditava valores (pode, inclusive ter ditado o nome das coisas, criando assim a linguagem, segundo o autor). Esses homens fortes, nobres (Nietzsche chama-os de nobres, mas não se trata de uma nobreza baseada em posses materiais, mas em aceitação de si mesmos, inclusive de sua vontade de potência), eram invejados pelos fracos, escravos, reativos. Mas os fracos, até mesmo por serem fracos, não os enfrentavam diretamente. Criaram, então, o "mal", designando os fortes como "maus", para viver melhor com suas limitações. Do mesmo jeito que ovelhas devem achar "más" as aves de rapina que as comem. O fraco distorceu o "bem", recriando-o, então, como o oposto do que faziam os fortes: aceitação, passividade, segurança... Os fracos seguiram o seu cansaço, seu medo, e a sua dificuldade de se relacionar consigo mesmo para criar, assim, a moral. E os sacerdotes criaram prêmios após a morte para estimular esse comportamento. Isso se tornou o "bem" que venceu na História e é aceito até hoje.
Na segunda dissertação, há um aprofundamento da questão da culpa e da má consciência, que surgem com esse padrão de moral cristão:
"Esse homem que, por falta de inimigos e resistências exteriores, cerrado numa opressiva estreiteza e regularidade de costumes, impacientemente lacerou, perseguiu, corroeu, espicaçou, maltratou a si mesmo, esse animal que querem amansar, que se fere nas barras da própria jaula, esse ser carente, consumido pela nostalgia do ermo, que a si mesmo teve de converter em câmara de tortura, insegura e perigosa mata - esse tolo, esse prisioneiro presa da ânsia e do desespero tornou-se o inventor da má consciência." (Segunda Dissertação, p. 73)
É como se todos os instintos destruidores, criadores, ativos inerentes ao homem, pela falta de uso externo, se voltassem para dentro do próprio homem, como um transbordamento de energia não utilizada no exterior. Com isso, ocorre o que o autor chama de uma "interiorização do homem". E é aqui que quero explorar melhor a questão da morte, ou do risco da morte, como NECESSÁRIO para Nietzsche. Novamente, como para Sócrates, o homem com a capacidade de filosofar, se vê como mais próximo da morte.
Mais especificamente na visão de Nietzsche, a infinidade de meios sociais criados para nos proteger da morte, acabou por deixar o homem num estado de interiorização, que, em minha opinião, gera mais e mais medo da morte: se você volta toda a sua atenção para o seu interior, qualquer mínima alteração interna te afeta mais fortemente. Qualquer medo se torna maior e a idéia da morte como perda de si mesmo talvez pareça ainda mais tenebrosa. Quanto mais reforçamos as paredes e sistemas de segurança e de vigilância de um cofre, mais atenção damos ao que ele contém, e mais medo temos de perder seu conteúdo.
Isso explicaria porque vivemos numa sociedade onde brota a "síndrome do pânico", que consiste, resumidamente, num medo fortíssimo e sem causa lógica. Não seria justamente uma NECESSIDADE do corpo, da nossa "grande razão", de ter algum medo, alguma sensação de risco? Pergunto-me se haverá algum estudo sobre a incidência dessa síndrome nos praticantes de bungee jumping ou de qualquer esporte que envolva um risco mortal (na internet, não encontrei). Meu palpite é de que a incidência seria bem menor ou nenhuma.
Talvez o grande problema seja que nos falta aceitar, filosoficamente, a morte. Assim como o envelhecimento. Queremos fazer plásticas para parecermos jovens, tomar remédios para não envelhecer, pagar plano de saúde para não morrer... Os médicos mantém vivos com aparelhos pessoas com cada vez mais idade, inconscientes, sem a capacidade de falar, de ouvir, de ver, de comer, de tocar... Para quê? Por quê?
Não há em Nietzsche uma resposta para algum tipo de vida coletiva diferente da nossa sociedade, baseada em cerceamentos individuais e busca de paz e segurança. Para Nietzsche, qualquer certeza, aliás, é uma vontade iludida de fazer sentido. Mas, pelo menos, o texto nos faz repensar nossas certezas, olhar de uma nova perspectiva nossa vida. E só isso já basta para transformar. E isso é o que considero mais importante na filosofia.
BIBLIOGRAFIA:
NIETZSCHE, F. Genealogia da Moral. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
PLATÃO. Diálogos: O Banquete, Fédon, Sofista, Político. Os Pensadores. São Paulo: Abril cultural, 1972.
(Fabio Rocha)
"É preciso, antes de tudo, expulsar esse medo do Aqueronte [o rio dos Infernos] que, penetrando até o fundo de nosso ser, envenena a vida humana, colore todas as coisas do negror da morte e não deixa subsistir nenhum prazer límpido e puro."
O estóico Epicteto complementa:
"Tens em mente - diz ele - que para o homem o princípio de todos os males, da baixeza, da covardia, é... o medo da morte? Exercita-te contra ela; que para isso tendam todas as tuas palavras, todos os teus estudos, todas as tuas leituras e saberás que é o único meio que os homens têm de se tornarem livres."
Luc Ferry fala também de Montaigne, de seu famoso adágio segundo o qual "filosofar é aprender a morrer" e de vários outros filósofos posteriores, mas se esquece do filósofo anterior a todos esses, dono original da idéia que filosofar é aprender a morrer, Sócrates.
Nesse trabalho, pretendemos analisar a questão da morte no diálogo "Fédon", de Platão, tentando um diálogo com a "Genealogia da Moral", de Nietzsche.
O diálogo "Fédon", já da maturidade de Platão, ocorre na época posterior ao julgamento de Sócrates, e anterior à sua execução com a cicuta. Seus discípulos o cercam nesses últimos instantes de vida, sofrendo muito, parecendo por todo o tempo não entender a mensagem principal de Sócrates: que a morte é uma escolha, já em vida, de quem é filósofo: "o exercício próprio dos filósofos não é precisamente libertar a alma e afastá-la do corpo?". (Alma é "psiqué" no original grego, "anima" em latim, e não devemos confundir com o sentido atual, cristão do termo. "Anima" significa aquilo que dá animação, pode ser traduzida também como "vida", por exemplo).
Pois bem, o que Sócrates quer dizer aqui? Eis o grande problema dos manuais de filosofia sobre o Fédon: tratar tudo de forma literal, e alma como o que chamamos hoje de espírito. Assim fazendo uma separação brutal entre corpo e alma já no texto grego, o que na verdade só houve, posteriormente, no pensamento moderno. Se tomarmos o sentido de alma como vida e tentarmos perceber as sutilezas do texto, poderemos interpretá-lo, talvez, melhor: o filósofo é aquele que se coloca numa posição além dos sentidos (corpo), podendo ver melhor, através da própria vida. O pensamento filosófico mais profundo necessita de um afastamento dos sentidos, do que Sócrates chama de corpo, e exige uma racionalidade mais abstrata e etérea. Nesses momentos, um som, uma visão ou qualquer experiência sensória atrapalha.
Para Platão, o corpo, ao mesmo tempo em que pode atrapalhar o pensamento filosófico, como distração dos sentidos, também está ligado a esse pensar. Há uma interdependência e uma diferença entre os planos da percepção e da inteligibilidade. Parmênides, em seu poema, já dizia que “o mesmo é pensar e ser”, e esse ser é ser compreensível. A percepção vem da inteligibilidade. É difícil para nós, contemporaneamente, com a herança deixada por Kant, fazer essa mudança na perspectiva do mundo, já que estamos habituados a ligar a inteligibilidade ao sujeito e não aos objetos. Mas, para Platão, a inteligibilidade de cada coisa está no ser dessa mesma coisa e não em nós. Logo, tudo o que percebemos através dos sentidos do nosso corpo não deve ser considerado como o “mais real e verdadeiro”. Não se deve ficar SATISFEITO, CONFORTÁVEL apenas com o que os sentidos nos trazem. Não deve bastar. É justamente essa a ilusão dos seres acorrentados no mito da caverna da sua “República”. A percepção imediata dos sentidos, as sombras na parede da caverna, não podem ser suficientes para se entender o real.
Já Nietzsche chama o corpo de “Grande Razão” no “Assim Falou Zaratustra” (“Dos desprezadores do corpo”). O que é essa grande razão? “O corpo é uma grande razão, uma multiplicidade com um único sentido, uma guerra e uma paz, um rebanho e um pastor.” Negação de qualquer coisa além, da metafísica. “A alma é apenas uma palavra para alguma coisa no corpo.” Negação da separação cartesiana entre espírito e corpo (que foi um dos grandes passos para que desprezássemos o corpo ao longo da história filosófica). “Eu sou corpo, por inteiro corpo e nada mais.” Tudo é o corpo. Podemos perceber também nessa “Grande Razão”, a presença de opostos (guerra versus paz, multiplicidade versus único sentido) e de tendências contrárias (rebanho versus pastor). Interdependência e diferença num conflito interno que, porém, segue um “único sentido”. Se pensarmos que as células de nossa pele, por exemplo, morrem e são totalmente substituídas a cada vinte e oito dias, não parece nada absurdo o pensamento de Nietzsche. Além disso, a ciência nunca conseguiu, até hoje, determinar com exatidão o lugar de nossa consciência no corpo. Nem a psicologia definir o que chamamos de “eu”. Para Nietzsche, o pensar é como um movimento do corpo... Ele mesmo gostava de longas caminhadas por bosques e montes para pensar. Enquanto nossas rotinas contemporâneas de estudo e trabalho, além da busca por conforto e segurança, nos deixam cada vez nos movendo menos (o que contribui para esse aumento da obesidade mundial), ou em movimentos que tendem a ser repetitivos, previsíveis, monótonos.
Mas então Nietzsche fala o oposto de Platão? Ele valoriza o corpo enquanto Platão valoriza a alma (o “Nous”)? Talvez não. Pois ao mesmo tempo em que o pensamento noético exige um “afastamento” dos sentidos corpóreos, é através desses mesmos sentidos que todos nós aprendemos, passo a passo, a elaborar qualquer tipo de raciocínio. Através do corpo é que aprendemos a linguagem, por exemplo...
Eis aqui mais uma sutileza que uma leitura literal (ou seria apressada?) de Sócrates deixa escapar. Há uma pressa na Academia em rotular e definir, para facilitar o enquadramento em sistemas estagnados que são passados por gerações e gerações de professores metódicos e superficiais, com palavras difíceis, para ouvidos poucos... Talvez se perca com isso muito mais do que nas diversas traduções pelas quais o texto original em grego passou.
Pois bem, nessa parte do trabalho, já podemos começar a perceber a ligação que há entre os opostos “morte” e “vida” no Fédon. O texto parece, aliás, de inspiração Heraclítica (para Heráclito, a harmonia nasce do conflito entre opostos), pois há sempre um jogo subterrâneo entre diversos opostos inseparáveis e complementares como o Yin e o Yang percorrendo todo o diálogo como pano de fundo: desregramento e temperança, Apolo e Dioniso, permanente e perecível, homem e Deus, corpo e alma, morte e vida etc.
Mas aprofundemos mais a questão do filósofo como homem mais próximo da morte. O que isso significa? Que estado é esse que o distanciamento dos sentidos pode proporcionar? Uma maior despreocupação com o que os "não-filósofos" chamam de “real”, distanciando-se das ilusões que os sentidos nos trazem. O filósofo quer a verdade e a exatidão. Não se trata de não experimentar nada através dos sentidos, mas sim de não bastar a experiência IMEDIATA!
Nesse sentido, podemos voltar a Nietzsche e achar semelhanças. Um pensamento tão profundo como o do eterno retorno, por exemplo, não se obtém através da pura experiência imediata de algum sentido. Mesmo tendo ele ocorrido a Nietzsche ao ver uma formação rochosa singular numa caminhada. Requer um mínimo momento que seja de reflexão e afastamento do mundo sensível.
Mas e a questão da morte na "Genealogia da Moral"? Primeiramente, acho válido termos uma visão geral da obra, que trata de uma pesquisa de Nietzsche da origem de nossos preconceitos morais, questionando se a moral seria algo positivo ou negativo para o homem. Ou seja, não apenas preocupado com a origem da moral, mas também - e principalmente - com o valor da mesma.
Para trilhar este caminho, Nietzsche sugere o autoconhecimento. Primeiramente, histórico: como podemos nos chamar "homens do conhecimento" se não conhecemos nem a nós mesmos, aceitando a moral padrão dogmática que nos é ensinada sem questionamentos? Valores como "não-egoísmo", abnegação, compaixão, sacrifício (muito idealizados por Schopenhauer, inclusive) acabaram sendo aceitos como padrão de comportamento pela sociedade. Nietzsche, ao contrário, viu neles "o grande perigo para a humanidade". Pois a partir dessa vontade que se volta "contra a vida", estamos a um passo da grande tentação ao nada (como a budista), às beiras do niilismo. Esses valores chamados "bons" seriam a negação de nossos verdadeiros instintos.
A compaixão, por exemplo, tão praticada (na teoria) pelos sacerdotes religiosos, para Nietzsche é uma forma de "envenenar a ferida" em vez de curá-la: a vida é também dor, e a dor fortalece. Aliviar a dor de outro é, então, torná-lo mais fraco, dependente e com menor capacidade de vencer qualquer dor por si mesmo.
"E se no 'bom' houvesse um sintoma regressivo, como um perigo, uma sedução, um veneno, um narcótico, mediante o qual o presente vivesse como que às expensas do futuro? Talvez de maneira mais cômoda, menos perigosa, mas também num estilo menor, mais baixo?... De modo que precisamente a moral seria o perigo entre os perigos?..." (Prólogo, p. 13)
O homem "bom" é o que aceita passivamente o rebanho, que não luta por um futuro melhor, que aceita a posição cômoda em sua poltrona e assiste passivamente a TV se maravilhando com o controle remoto, os perigos dos filmes, engordando com os gastos cada vez menores de energia de seu corpo e a maior oferta e variedade de alimentos, aceitando as mesmices dos jornais e novelas (e, com isso, a aparência de impossibilidade de se mudar qualquer coisa). Variações desse estilo de vida: esportes radicais. Saltar de pára-quedas, bungee jumping etc. Não seriam formas de atenuar a saudade humana de algum RISCO na vida? Será que algum risco de MORTE nos é necessário?
Na primeira dissertação, Nietzsche trata da inversão dos valores "bem" e "mal". O bom, originalmente, foi o forte, que, justamente por sua força, criava e ditava valores (pode, inclusive ter ditado o nome das coisas, criando assim a linguagem, segundo o autor). Esses homens fortes, nobres (Nietzsche chama-os de nobres, mas não se trata de uma nobreza baseada em posses materiais, mas em aceitação de si mesmos, inclusive de sua vontade de potência), eram invejados pelos fracos, escravos, reativos. Mas os fracos, até mesmo por serem fracos, não os enfrentavam diretamente. Criaram, então, o "mal", designando os fortes como "maus", para viver melhor com suas limitações. Do mesmo jeito que ovelhas devem achar "más" as aves de rapina que as comem. O fraco distorceu o "bem", recriando-o, então, como o oposto do que faziam os fortes: aceitação, passividade, segurança... Os fracos seguiram o seu cansaço, seu medo, e a sua dificuldade de se relacionar consigo mesmo para criar, assim, a moral. E os sacerdotes criaram prêmios após a morte para estimular esse comportamento. Isso se tornou o "bem" que venceu na História e é aceito até hoje.
Na segunda dissertação, há um aprofundamento da questão da culpa e da má consciência, que surgem com esse padrão de moral cristão:
"Esse homem que, por falta de inimigos e resistências exteriores, cerrado numa opressiva estreiteza e regularidade de costumes, impacientemente lacerou, perseguiu, corroeu, espicaçou, maltratou a si mesmo, esse animal que querem amansar, que se fere nas barras da própria jaula, esse ser carente, consumido pela nostalgia do ermo, que a si mesmo teve de converter em câmara de tortura, insegura e perigosa mata - esse tolo, esse prisioneiro presa da ânsia e do desespero tornou-se o inventor da má consciência." (Segunda Dissertação, p. 73)
É como se todos os instintos destruidores, criadores, ativos inerentes ao homem, pela falta de uso externo, se voltassem para dentro do próprio homem, como um transbordamento de energia não utilizada no exterior. Com isso, ocorre o que o autor chama de uma "interiorização do homem". E é aqui que quero explorar melhor a questão da morte, ou do risco da morte, como NECESSÁRIO para Nietzsche. Novamente, como para Sócrates, o homem com a capacidade de filosofar, se vê como mais próximo da morte.
Mais especificamente na visão de Nietzsche, a infinidade de meios sociais criados para nos proteger da morte, acabou por deixar o homem num estado de interiorização, que, em minha opinião, gera mais e mais medo da morte: se você volta toda a sua atenção para o seu interior, qualquer mínima alteração interna te afeta mais fortemente. Qualquer medo se torna maior e a idéia da morte como perda de si mesmo talvez pareça ainda mais tenebrosa. Quanto mais reforçamos as paredes e sistemas de segurança e de vigilância de um cofre, mais atenção damos ao que ele contém, e mais medo temos de perder seu conteúdo.
Isso explicaria porque vivemos numa sociedade onde brota a "síndrome do pânico", que consiste, resumidamente, num medo fortíssimo e sem causa lógica. Não seria justamente uma NECESSIDADE do corpo, da nossa "grande razão", de ter algum medo, alguma sensação de risco? Pergunto-me se haverá algum estudo sobre a incidência dessa síndrome nos praticantes de bungee jumping ou de qualquer esporte que envolva um risco mortal (na internet, não encontrei). Meu palpite é de que a incidência seria bem menor ou nenhuma.
Talvez o grande problema seja que nos falta aceitar, filosoficamente, a morte. Assim como o envelhecimento. Queremos fazer plásticas para parecermos jovens, tomar remédios para não envelhecer, pagar plano de saúde para não morrer... Os médicos mantém vivos com aparelhos pessoas com cada vez mais idade, inconscientes, sem a capacidade de falar, de ouvir, de ver, de comer, de tocar... Para quê? Por quê?
Não há em Nietzsche uma resposta para algum tipo de vida coletiva diferente da nossa sociedade, baseada em cerceamentos individuais e busca de paz e segurança. Para Nietzsche, qualquer certeza, aliás, é uma vontade iludida de fazer sentido. Mas, pelo menos, o texto nos faz repensar nossas certezas, olhar de uma nova perspectiva nossa vida. E só isso já basta para transformar. E isso é o que considero mais importante na filosofia.
BIBLIOGRAFIA:
NIETZSCHE, F. Genealogia da Moral. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
PLATÃO. Diálogos: O Banquete, Fédon, Sofista, Político. Os Pensadores. São Paulo: Abril cultural, 1972.
(Fabio Rocha)
LEIBNIZ: LIBERDADE NA ETERNIDADE
Este trabalho visa explicar a noção de conceito completo para Leibniz, articulando-o com a definição analítica da verdade e o princípio da identidade dos indiscerníveis, indicando os problemas que esta noção coloca para a liberdade humana.
Comecemos pelo início: a criação do mundo. O Deus de Leibniz tem vontade e intelecto, distintos ontologicamente (nisso, difere de Espinosa, onde vontade e intelecto se misturariam). Deus é também, por natureza, bom, o que implica que só poderia escolher (na eternidade ) o melhor dos mundos possíveis para criar (com a vontade). Vale notar que o melhor, para o autor, seria o resultado máximo (maior riqueza de efeitos) com um menor gasto de recursos (ou meios). Deus é uma perfeição para Leibniz: tem forma e natureza suscetível de último grau (não se pode acrescentar maior). Ou seja, tem onisciência, onipotência e bondade absoluta (vontade soberanamente boa).
Mas como se dá essa escolha do melhor mundo? Deus, tendo intelecto infinito, pode escolher dentre infinitas combinações de substâncias individuais , porém apenas as combinações possíveis (respeitando o princípio da não-contradição). Por exemplo, por ser contraditório, Deus não poderia criar um quadrado redondo. Ele organiza, assim, vários mundos compossíveis com o intelecto e escolhe o melhor com a vontade.
A criação do mundo dá início à temporalidade, onde o potencial de cada substância individual se torna uma ação a cada instante do tempo. Com isso, Deus, ao escolher o melhor dos mundos possíveis como a melhor combinação possível de substâncias individuais, já sabe, na eternidade, as características intrínsecas a cada uma delas. Assim, quando isto se desdobra na temporalidade, podemos afirmar que o Deus de Leibniz já sabe tudo o que aconteceu e acontecerá com todas as substâncias individuais.
Aí temos a teoria analítica da verdade: Todos os infinitos predicados são necessários para o sujeito (finito) ser o que é. Logo, um predicado (seja ele necessário – negação impossível – ou contingente – contrário não envolve contradição) é verdadeiro se está contido no conceito do sujeito.
Seguem-se daí a definição de conceito completo e de indivíduo:
1 - O conceito C de uma coisa S é dito completo se e somente se, da preposição “S é C” pode-se deduzir todas as outras (infinitas) proposições
verdadeiras tendo S como sujeito: “S é P1”; “S é P2”; ...
2 - S é um indivíduo se e somente se S possui um conceito completo.
Isso se reflete nas mínimas coisas: por exemplo, se eu não escrevesse esta frase neste instante, não seria eu, pois no conceito do meu “eu”, já estaria determinado desde a eternidade que eu escreveria esta frase neste instante (pelas propriedades relacionais que vinculam todas as coisas, o mundo também não seria o mesmo). É o chamado superessencialismo de Leibniz: todas as propriedades de um indivíduo (necessárias ou contingentes) constituem a sua identidade. Esse princípio de “eu” não ser mais “eu” por uma diferença na ação é chamando de princípio da identidade dos indiscerníveis: toda diferença extrínseca repousa numa intrínseca. Ou seja, não é possível duas substâncias individuais se assemelharem completamente (em todos os seus infinitos predicados) e diferirem apenas em número.
Em complemento, nada é incerto ou casual para Leibniz, pelo princípio da razão suficiente, que diz que tudo tem uma causa ou razão.
Aí começa o problema da liberdade. Como teríamos liberdade de escolha de nossos atos, se Deus já soubesse de tudo que escolheríamos? Como podem haver porposições contingentes, considerando-se o conceito completo? E como poderíamos realizar alguma ação de modo diferente, mantendo nossa identidade, considerando-se o princípio da identidade dos indiscerníveis?
Definamos, antes de nos aprofundar nessas questões, as três condições de liberdade de ação para Leibniz: espontaneidade (o agente é a fonte única da ação), inteligência (a decisão da ação é baseada em razões) e contingência (o oposto da escolha da ação não seria uma contradição).
Há duas tentativas de se resolver esse problema: a concepção epistêmica da contingência e a concepção ontológica da contingência. A primeira diz que, para Deus, que tem intelecto infinito, tudo é necessário. Nós é que, por não sermos infinitos como ele, interpretamos algumas propriedades como contingentes por ignorarmos todas as suas causas. A segunda, diferencia necessidade hipotética de necessidade lógica, assim compatibilizando determinismo com contingência.
Adiante detalharemos mais a segunda concepção, com base no texto de Luis Henrique Lopes dos Santos, tentando mostrar como o sistema de Libniz atende às três condições de liberdade:
A conexão entre predicados e substâncias é anterior à vontade divina. Logo, mesmo uma ação estando determinada (necessidade hipotética), as substâncias individuais têm espontaneidade de seguir a sua natureza interna, seguindo a sua autodeterminação prévia, anterior à própria criação do melhor dos mundos possíveis. Isso validaria a condição de ESPONTANEIDADE.
Quanto a INTELIGÊNCIA, não há maiores dificuldades a tratar.
Para a CONTINGÊNCIA ser também satisfeita, tem que ser possível o oposto da referida ação, mesmo esta que não seja efetivamente realizada temporalmente. Essa possibilidade é lógica e não temporal. É o chamado “possível em si”, do plano da eternidade, que pode explicar a contingência de tal ação.
A liberdade para Leibniz é a capacidade de se guiar ao máximo a partir de sua própria essência ou natureza. E podemos questionar: a liberdade humana existe em seu sistema, no plano da eternidade, ou o “possível em si”, que garante a contingência de uma ação livre, é que se dá no plano da eternidade?
Bibliografia:
LEIBNIZ, G. H. O discurso de metafísica. São Paulo: Abril Cultural, 1983. (Os Pensadores)
SANTOS, L. H. Leibniz e os futuros contingentes. Revista Analytica. Volume 3. Número 1. 1998. pp. 91-121.
(Fabio Rocha)
Comecemos pelo início: a criação do mundo. O Deus de Leibniz tem vontade e intelecto, distintos ontologicamente (nisso, difere de Espinosa, onde vontade e intelecto se misturariam). Deus é também, por natureza, bom, o que implica que só poderia escolher (na eternidade ) o melhor dos mundos possíveis para criar (com a vontade). Vale notar que o melhor, para o autor, seria o resultado máximo (maior riqueza de efeitos) com um menor gasto de recursos (ou meios). Deus é uma perfeição para Leibniz: tem forma e natureza suscetível de último grau (não se pode acrescentar maior). Ou seja, tem onisciência, onipotência e bondade absoluta (vontade soberanamente boa).
Mas como se dá essa escolha do melhor mundo? Deus, tendo intelecto infinito, pode escolher dentre infinitas combinações de substâncias individuais , porém apenas as combinações possíveis (respeitando o princípio da não-contradição). Por exemplo, por ser contraditório, Deus não poderia criar um quadrado redondo. Ele organiza, assim, vários mundos compossíveis com o intelecto e escolhe o melhor com a vontade.
A criação do mundo dá início à temporalidade, onde o potencial de cada substância individual se torna uma ação a cada instante do tempo. Com isso, Deus, ao escolher o melhor dos mundos possíveis como a melhor combinação possível de substâncias individuais, já sabe, na eternidade, as características intrínsecas a cada uma delas. Assim, quando isto se desdobra na temporalidade, podemos afirmar que o Deus de Leibniz já sabe tudo o que aconteceu e acontecerá com todas as substâncias individuais.
Aí temos a teoria analítica da verdade: Todos os infinitos predicados são necessários para o sujeito (finito) ser o que é. Logo, um predicado (seja ele necessário – negação impossível – ou contingente – contrário não envolve contradição) é verdadeiro se está contido no conceito do sujeito.
Seguem-se daí a definição de conceito completo e de indivíduo:
1 - O conceito C de uma coisa S é dito completo se e somente se, da preposição “S é C” pode-se deduzir todas as outras (infinitas) proposições
verdadeiras tendo S como sujeito: “S é P1”; “S é P2”; ...
2 - S é um indivíduo se e somente se S possui um conceito completo.
Isso se reflete nas mínimas coisas: por exemplo, se eu não escrevesse esta frase neste instante, não seria eu, pois no conceito do meu “eu”, já estaria determinado desde a eternidade que eu escreveria esta frase neste instante (pelas propriedades relacionais que vinculam todas as coisas, o mundo também não seria o mesmo). É o chamado superessencialismo de Leibniz: todas as propriedades de um indivíduo (necessárias ou contingentes) constituem a sua identidade. Esse princípio de “eu” não ser mais “eu” por uma diferença na ação é chamando de princípio da identidade dos indiscerníveis: toda diferença extrínseca repousa numa intrínseca. Ou seja, não é possível duas substâncias individuais se assemelharem completamente (em todos os seus infinitos predicados) e diferirem apenas em número.
Em complemento, nada é incerto ou casual para Leibniz, pelo princípio da razão suficiente, que diz que tudo tem uma causa ou razão.
Aí começa o problema da liberdade. Como teríamos liberdade de escolha de nossos atos, se Deus já soubesse de tudo que escolheríamos? Como podem haver porposições contingentes, considerando-se o conceito completo? E como poderíamos realizar alguma ação de modo diferente, mantendo nossa identidade, considerando-se o princípio da identidade dos indiscerníveis?
Definamos, antes de nos aprofundar nessas questões, as três condições de liberdade de ação para Leibniz: espontaneidade (o agente é a fonte única da ação), inteligência (a decisão da ação é baseada em razões) e contingência (o oposto da escolha da ação não seria uma contradição).
Há duas tentativas de se resolver esse problema: a concepção epistêmica da contingência e a concepção ontológica da contingência. A primeira diz que, para Deus, que tem intelecto infinito, tudo é necessário. Nós é que, por não sermos infinitos como ele, interpretamos algumas propriedades como contingentes por ignorarmos todas as suas causas. A segunda, diferencia necessidade hipotética de necessidade lógica, assim compatibilizando determinismo com contingência.
Adiante detalharemos mais a segunda concepção, com base no texto de Luis Henrique Lopes dos Santos, tentando mostrar como o sistema de Libniz atende às três condições de liberdade:
A conexão entre predicados e substâncias é anterior à vontade divina. Logo, mesmo uma ação estando determinada (necessidade hipotética), as substâncias individuais têm espontaneidade de seguir a sua natureza interna, seguindo a sua autodeterminação prévia, anterior à própria criação do melhor dos mundos possíveis. Isso validaria a condição de ESPONTANEIDADE.
Quanto a INTELIGÊNCIA, não há maiores dificuldades a tratar.
Para a CONTINGÊNCIA ser também satisfeita, tem que ser possível o oposto da referida ação, mesmo esta que não seja efetivamente realizada temporalmente. Essa possibilidade é lógica e não temporal. É o chamado “possível em si”, do plano da eternidade, que pode explicar a contingência de tal ação.
A liberdade para Leibniz é a capacidade de se guiar ao máximo a partir de sua própria essência ou natureza. E podemos questionar: a liberdade humana existe em seu sistema, no plano da eternidade, ou o “possível em si”, que garante a contingência de uma ação livre, é que se dá no plano da eternidade?
Bibliografia:
LEIBNIZ, G. H. O discurso de metafísica. São Paulo: Abril Cultural, 1983. (Os Pensadores)
SANTOS, L. H. Leibniz e os futuros contingentes. Revista Analytica. Volume 3. Número 1. 1998. pp. 91-121.
(Fabio Rocha)
Prólogo de Zaratustra: a águia, a serpente e o santo
Assim começa o livro: "Aos trinta anos de idade, deixou Zaratustra sua terra natal [...] e foi para a montanha." Zaratustra abre mão do conforto e segurança de sua heimat para se aventurar na inóspita, dura, isolada montanha, onde passou simplesmente dez anos. Considerando o tom profético-religioso do texto semelhante a passagens bíblicas (porém claramente crítico do cristianismo e seus dogmas), podemos pensar aqui num retiro semelhante ao de Jesus Cristo no deserto. Zaratustra deixou os homens, as certezas e confortos de terra, para escolher o ar puro das alturas e a solidão.
Durante todo esse tempo, teve como únicas companhias uma águia e uma serpente. Podemos nos aprofundar na simbologia desses animais.
A serpente é um ser rastejante, que passa a vida toda com seu corpo inteiro colado ao solo, se esgueirando entre rochas e sombras. Seu ataque é ardiloso, geralmente, contando com o elemento surpresa e o veneno que carrega na boca. Talvez seja uma representação do racionalismo excessivo, da sistematização excessiva, do ser "pé no chão" até demais.
A simbologia da serpente é vasta e com bastantes variações ao longo da história, mas sempre tende a estar ligada a terra e a inteligência. "A serpente guarda em si intrigantes paradoxos: se por um lado exprime uma ameaça (já que de seu veneno pode sobrevir a morte), por outro, resume no processo de renovação de sua pele todo o intrincado mistério da vida, que se atualiza em movimento rejuvenescente." (fonte: Paulo Urban - http://www.terra.com.br/planetanaweb/341/reconectando/civilizacoesetribos/a_simbologia_da_serpente_01.htm )Essa simbologia da renovação constante me parece bem interessante. A águia, como falaremos mais adiante, também passa por um ciclo (mas um apenas) de transformação. Talvez ambos os animais, nesse sentido, representem o devir e a mudança como companheiros de Zaratustra nas alturas.
Além disso, a imagem da serpente comendo a própria cauda, formando um círculo, num movimento circular e contínuo (antiga imagem alquímica do "ouroboros" ou "oroboro" ou "uróboro") é também uma visão da unidade em tudo e todos, a totalidade da existência, sem início nem fim, e pode muito bem estar presente no texto nietzscheano como um elo com o conceito de "eterno retorno". Na poesia de Ana Hatherly:
"O círculo é a forma eleita
É ovo, é zero.
É ciclo, é ciência.
Nele se inclui todo o mistério
E toda a sapiência.
É o que está feito,
Perfeito e determinado,
É o que principia
No que está acabado.
A viagem que o meu ser empreende
Começa em mim,
E fora de mim,
Ainda a mim se prende.
A senda mais perigosa.
Em nós se consumando,
Passando a existência
Mil círculos concêntricos
Desenhando."
O extremo oposto, a águia, animal sagrado de Júpiter, é o belo, forte, veloz, aéreo, solar, apolíneo, de ataque preciso e direto. Não está preso ao chão. Aliás, muito pelo contrário, no chão é presa fácil - o inverso da serpente. A águia pode estar representando o outro lado que todo ser carrega dentro de si: divagador, sonhador, poeta... Será que poderíamos colocar também o filósofo aqui?
Ainda sobre a simbologia da águia: "A águia, como símbolo da força, da grandeza e da majestade, foi usada nos exércitos, figurando nos estandartes de Ciro, rei dos Persas, e, mais tarde, durante o segundo consulado de Mário, encimando as lanças que eram insígnias das legiões. [...] Na simbologia cristã aparece a águia, simbolizando talvez a ressurreição e o triunfo de Cristo e do cristianismo. [...] Foi também o símbolo da alma humana, o símbolo das artes. Chama-se águia ao homem muito perspicaz, penetrante, que vê claro e longe; superior em inteligência." (fonte: http://sotaodaines.chrome.pt/sotao/aguia_2.html )
A renovação, a transformação de Zaratustra nesse período de isolamento de 10 anos na montanha também tem algo de semelhante com um processo pelo qual as águias passam: "O ciclo de vida das águias é dividido em duas etapas de 35 anos em média. Ao final do primeiro ciclo, seu bico já está encurvado demais para ingerir alimentos, suas penas estão desgastadas para o vôo e suas garras demasiadamente grandes para segurar suas presas. Neste período a ave retira-se para uma encosta rochosa e começa o processo de renovação. Ela bate o bico contra as rochas durante dias até que ele caia. Depois de semanas nasce um novo bico forte e afiado com o qual ela arranca todas as penas e garras de seu corpo. O processo é doloroso, mas depois de aproximadamente 6 meses, com novas garras, bico e plumagem, ela está pronta para alçar o vôo da renovação. A simbologia da águia tem diversos significados e está presente como ícone representativo de inúmeras culturas." (fonte: http://www.keynes.com.br )
A presença dos dois animais no texto nos remete a Heráclito, que Nietzsche admite ter lhe influenciado fortemente: "O contrário é convergente e dos divergentes, a mais bela harmonia." (fragmento oito - tradução de Alexandre Costa) Talvez os dois animais "contrários" sejam convergentes a um meio-termo ideal, uma justa medida entre o céu e a terra.
Numa manhã, ao ver que o sol não seria feliz se não tivesse a quem iluminar, resolve descer a montanha e ir dividir com os homens sua sabedoria, como uma taça prestes a transbordar. Quer trazer o fogo, como Prometeu, do alto para o baixo, em sua pregação. Porém, como alerta Oswaldo Giacoia Junior em seu texto sobre este prólogo (ver bibliografia abaixo), "Zaratustra inicia propriamente sua pregação em torno dos trinta anos, dando assim a indicação daquilo que Nietzsche considerava a prematuridade do Cristianismo, enquanto religião constitutiva da medula ética da cultura ocidental."
Seu primeiro encontro é com um velho religioso, um santo eremita, que vivia na floresta, também isolado dos homens, para amar e louvar a Deus. Diz o santo: "Coisa por demais imperfeita é, para mim, o ser humano." Preferindo, assim, a companhia de Deus a dos homens. Podemos perceber aí amargura, desilusão e ressentimento com a humanidade? Esse comportamento lembra o de alguns monges ou padres, e uma questão interessante que traz é: será que essa harmonia ou iluminação no isolamento total não éum caminho "fácil demais" para o bem-estar? Não será uma fuga, na verdade? Como alguém que foge da luta, chamando o adversário mais forte de "imperfeito"? Outra questão interessante que o trecho suscita: a psicanálise diz que o que somos depende do olhar do outro sobre nós. O que é esse santo, então, se nenhum olho o vê?
O velho diz também: "Mudado está Zaratustra, tornou-se uma criança, Zaratustra despertou, Zaratustra; que pretendes, agora, entre os que dormem?" Outra referência a Heráclito, que para falar do tempo ayón usa a imagem de uma criança jogando consigo mesma. Além disso, Heráclito chamava os não iniciados, sem uma percepção filosófica maior do todo, de "os que dormem" (os "muitos" ou roi-poloi). A idéia da criança além do tempo, e dos limites do seu próprio corpo é bem explorada por Clarice Lispector no seu "Menino a bico de pena": "Não sei como desenhar o menino. Sei que é impossível desenhá-lo a carvão, pois até o bico de pena mancha o papel para além da finíssima linha de extrema atualidade em que ele vivi. Um dia o domesticaremos em humano, e poderemos desenhá-lo." (in Felicidade Clandestina, Rio de Janeiro, Rocco: 1998. p. 136).
Zaratustra descendo a montanha banhado em luz dourada parece querer adentrar as trevas do mito da caverna de Platão, e dividir sua luz com aqueles que acreditam que as sombras são a realidade, fazendo com que possam se libertar. Este é o papel do filósofo para Sócrates, na República... Mesmo que aqueles na escuridão venham a matá-lo. Mesmo correndo esse risco, Zaratustra quer dar-lhes de presente o super-homem (também traduzido como além-do-homem). Esse é o alerta que o santo dá a Zaratustra: "Queres, hoje, trazer o fogo para o vale? Não receias as penas contra os incendiários?"
É interessante notar que esse Zaratustra dançarino e sorridente poupa o santo, o primeiro ser humano que ele encontra em seu ocaso, e vai embora ("antes que vos tire alguma coisa"). Isso porque o velho na floresta ainda "não soube que Deus está morto!"
BIBLIOGRAFIA:
COSTA, Alexandre. Heráclito: fragmentos contextualizados. Rio de Janeiro: DIFEL, 2002.
GIACOIA, Oswaldo. O Além do Homem e o Último Homem: Considerações sobre o Prólogo de Assim falou Zaratustra. ETHICA - Cadernos Acadêmicos, v. 4, n. 2, p.69-87. Rio de Janeiro: Universidade Gama Filho, 1997.
NIETZSCHE, F. A filosofia na idade trágica dos gregos. Trad. Maria Inês Vieira de Andrade. Lisboa: Edições 70, 2002.
_____________. Assim falou zaratustra. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006.
PLATÃO. A República. Trad. Maria Helena da Rocha Pereira. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1983.
(Sites supracitados, no próprio texto.)
(Fabio Rocha)
Durante todo esse tempo, teve como únicas companhias uma águia e uma serpente. Podemos nos aprofundar na simbologia desses animais.
A serpente é um ser rastejante, que passa a vida toda com seu corpo inteiro colado ao solo, se esgueirando entre rochas e sombras. Seu ataque é ardiloso, geralmente, contando com o elemento surpresa e o veneno que carrega na boca. Talvez seja uma representação do racionalismo excessivo, da sistematização excessiva, do ser "pé no chão" até demais.
A simbologia da serpente é vasta e com bastantes variações ao longo da história, mas sempre tende a estar ligada a terra e a inteligência. "A serpente guarda em si intrigantes paradoxos: se por um lado exprime uma ameaça (já que de seu veneno pode sobrevir a morte), por outro, resume no processo de renovação de sua pele todo o intrincado mistério da vida, que se atualiza em movimento rejuvenescente." (fonte: Paulo Urban - http://www.terra.com.br/planetanaweb/341/reconectando/civilizacoesetribos/a_simbologia_da_serpente_01.htm )Essa simbologia da renovação constante me parece bem interessante. A águia, como falaremos mais adiante, também passa por um ciclo (mas um apenas) de transformação. Talvez ambos os animais, nesse sentido, representem o devir e a mudança como companheiros de Zaratustra nas alturas.
Além disso, a imagem da serpente comendo a própria cauda, formando um círculo, num movimento circular e contínuo (antiga imagem alquímica do "ouroboros" ou "oroboro" ou "uróboro") é também uma visão da unidade em tudo e todos, a totalidade da existência, sem início nem fim, e pode muito bem estar presente no texto nietzscheano como um elo com o conceito de "eterno retorno". Na poesia de Ana Hatherly:
"O círculo é a forma eleita
É ovo, é zero.
É ciclo, é ciência.
Nele se inclui todo o mistério
E toda a sapiência.
É o que está feito,
Perfeito e determinado,
É o que principia
No que está acabado.
A viagem que o meu ser empreende
Começa em mim,
E fora de mim,
Ainda a mim se prende.
A senda mais perigosa.
Em nós se consumando,
Passando a existência
Mil círculos concêntricos
Desenhando."
O extremo oposto, a águia, animal sagrado de Júpiter, é o belo, forte, veloz, aéreo, solar, apolíneo, de ataque preciso e direto. Não está preso ao chão. Aliás, muito pelo contrário, no chão é presa fácil - o inverso da serpente. A águia pode estar representando o outro lado que todo ser carrega dentro de si: divagador, sonhador, poeta... Será que poderíamos colocar também o filósofo aqui?
Ainda sobre a simbologia da águia: "A águia, como símbolo da força, da grandeza e da majestade, foi usada nos exércitos, figurando nos estandartes de Ciro, rei dos Persas, e, mais tarde, durante o segundo consulado de Mário, encimando as lanças que eram insígnias das legiões. [...] Na simbologia cristã aparece a águia, simbolizando talvez a ressurreição e o triunfo de Cristo e do cristianismo. [...] Foi também o símbolo da alma humana, o símbolo das artes. Chama-se águia ao homem muito perspicaz, penetrante, que vê claro e longe; superior em inteligência." (fonte: http://sotaodaines.chrome.pt/sotao/aguia_2.html )
A renovação, a transformação de Zaratustra nesse período de isolamento de 10 anos na montanha também tem algo de semelhante com um processo pelo qual as águias passam: "O ciclo de vida das águias é dividido em duas etapas de 35 anos em média. Ao final do primeiro ciclo, seu bico já está encurvado demais para ingerir alimentos, suas penas estão desgastadas para o vôo e suas garras demasiadamente grandes para segurar suas presas. Neste período a ave retira-se para uma encosta rochosa e começa o processo de renovação. Ela bate o bico contra as rochas durante dias até que ele caia. Depois de semanas nasce um novo bico forte e afiado com o qual ela arranca todas as penas e garras de seu corpo. O processo é doloroso, mas depois de aproximadamente 6 meses, com novas garras, bico e plumagem, ela está pronta para alçar o vôo da renovação. A simbologia da águia tem diversos significados e está presente como ícone representativo de inúmeras culturas." (fonte: http://www.keynes.com.br )
A presença dos dois animais no texto nos remete a Heráclito, que Nietzsche admite ter lhe influenciado fortemente: "O contrário é convergente e dos divergentes, a mais bela harmonia." (fragmento oito - tradução de Alexandre Costa) Talvez os dois animais "contrários" sejam convergentes a um meio-termo ideal, uma justa medida entre o céu e a terra.
Numa manhã, ao ver que o sol não seria feliz se não tivesse a quem iluminar, resolve descer a montanha e ir dividir com os homens sua sabedoria, como uma taça prestes a transbordar. Quer trazer o fogo, como Prometeu, do alto para o baixo, em sua pregação. Porém, como alerta Oswaldo Giacoia Junior em seu texto sobre este prólogo (ver bibliografia abaixo), "Zaratustra inicia propriamente sua pregação em torno dos trinta anos, dando assim a indicação daquilo que Nietzsche considerava a prematuridade do Cristianismo, enquanto religião constitutiva da medula ética da cultura ocidental."
Seu primeiro encontro é com um velho religioso, um santo eremita, que vivia na floresta, também isolado dos homens, para amar e louvar a Deus. Diz o santo: "Coisa por demais imperfeita é, para mim, o ser humano." Preferindo, assim, a companhia de Deus a dos homens. Podemos perceber aí amargura, desilusão e ressentimento com a humanidade? Esse comportamento lembra o de alguns monges ou padres, e uma questão interessante que traz é: será que essa harmonia ou iluminação no isolamento total não éum caminho "fácil demais" para o bem-estar? Não será uma fuga, na verdade? Como alguém que foge da luta, chamando o adversário mais forte de "imperfeito"? Outra questão interessante que o trecho suscita: a psicanálise diz que o que somos depende do olhar do outro sobre nós. O que é esse santo, então, se nenhum olho o vê?
O velho diz também: "Mudado está Zaratustra, tornou-se uma criança, Zaratustra despertou, Zaratustra; que pretendes, agora, entre os que dormem?" Outra referência a Heráclito, que para falar do tempo ayón usa a imagem de uma criança jogando consigo mesma. Além disso, Heráclito chamava os não iniciados, sem uma percepção filosófica maior do todo, de "os que dormem" (os "muitos" ou roi-poloi). A idéia da criança além do tempo, e dos limites do seu próprio corpo é bem explorada por Clarice Lispector no seu "Menino a bico de pena": "Não sei como desenhar o menino. Sei que é impossível desenhá-lo a carvão, pois até o bico de pena mancha o papel para além da finíssima linha de extrema atualidade em que ele vivi. Um dia o domesticaremos em humano, e poderemos desenhá-lo." (in Felicidade Clandestina, Rio de Janeiro, Rocco: 1998. p. 136).
Zaratustra descendo a montanha banhado em luz dourada parece querer adentrar as trevas do mito da caverna de Platão, e dividir sua luz com aqueles que acreditam que as sombras são a realidade, fazendo com que possam se libertar. Este é o papel do filósofo para Sócrates, na República... Mesmo que aqueles na escuridão venham a matá-lo. Mesmo correndo esse risco, Zaratustra quer dar-lhes de presente o super-homem (também traduzido como além-do-homem). Esse é o alerta que o santo dá a Zaratustra: "Queres, hoje, trazer o fogo para o vale? Não receias as penas contra os incendiários?"
É interessante notar que esse Zaratustra dançarino e sorridente poupa o santo, o primeiro ser humano que ele encontra em seu ocaso, e vai embora ("antes que vos tire alguma coisa"). Isso porque o velho na floresta ainda "não soube que Deus está morto!"
BIBLIOGRAFIA:
COSTA, Alexandre. Heráclito: fragmentos contextualizados. Rio de Janeiro: DIFEL, 2002.
GIACOIA, Oswaldo. O Além do Homem e o Último Homem: Considerações sobre o Prólogo de Assim falou Zaratustra. ETHICA - Cadernos Acadêmicos, v. 4, n. 2, p.69-87. Rio de Janeiro: Universidade Gama Filho, 1997.
NIETZSCHE, F. A filosofia na idade trágica dos gregos. Trad. Maria Inês Vieira de Andrade. Lisboa: Edições 70, 2002.
_____________. Assim falou zaratustra. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006.
PLATÃO. A República. Trad. Maria Helena da Rocha Pereira. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1983.
(Sites supracitados, no próprio texto.)
(Fabio Rocha)
O silêncio dos intelectuais
Estava vendo agora o programa da TVE "O silêncio dos intelectuais" (aliás, TVE e TV Cultura são boas demais, se você selecionar os programas - recomendo também o "Recorte Cultural" e "Café Filosófico", respectivamente). O programa tratou da questão do poder da mídia. A TV, a tela do computador ou do celular ditam o que é o real. Os recortes instantâneos que não são nada além do que a percepção individual de alguém, ou o modelo padrão para esses meios midiáticos. Mas são confundidos pela maioria dos "espectadores" com a própria realidade... Um intelectual francês estava falando nesse programa que se você meciona o Zidane pra qualquer ser no mundo, ele é reconhecido, enquanto que um matemático francês extraordinariamente jovem e brilhante, vencedor da medalha Fields (equivalente ao Nobel de Matemática, entregue apenas de 4 em 4 anos) não se conhece em lugar nenhum. (Nem na internet achei esses dados direito...) O Zidane cabe na tela, cabe no jornal, cabe na copa transmitida ao vivo pro mundo todo... É visão. É padrão. Mas e a Matemática? Filosofia e poesia ainda há em raros programas de TV e nesse maravilhoso e democrático meio que é a internet... Mas Matemática talvez nem aqui. É puro pensar, "episteme" grega, longe da "doxa", sensação, em que estamos constantemente mergulhados, onde tudo passa rápido e pronto e dado. Não temos nunca tempo nem disposição para silêncio, para pensar sozinho, estudar profundamente algo e - claro - menos ainda para criar. Por isso também é que os intelectuais parecem silenciosos, segundo o programa. Não cabem nesse esquema de mídia, logo ficam quietos ou em guetos. A meu ver, eis aí o grande risco de quem pensa ou escreve ou faz matemática, de quem cria de maneira geral: falar para cada vez menos gente. E penso que esses guetos tendem a se estreitar, se encolher. Por isso gosto da Marilena Chauí, que fala mais claro que a maioria (no programa, inclusive). Não é preciso usar um vocabulário tão cheio de requintes como a maior parte dos intelectuais faz... Acho que o mesmo problema há na poesia mais "aceita" pelas editoras hoje. Por isso, tende a só ser apreciada por poetas. Tento fugir desses "hermetismos pasquais" nas minhas. Apóio o retorno ao mais popular e simples, sem ser simplório, como Quintana na poesia, Beethoven na música clássica, Chauí na Filosofia. Mas sem os excessos também... Cabe aqui a "justa medida" Aristotélica ou o "caminho do meio" do Buda. As auto-ajudas imbecis são tão claras quanto as cabeçadas do Zidane, mas aí já começa a faltar a profundidade... ;)
(Fabio Rocha)
(Fabio Rocha)
OS AFETOS PRIMITIVOS NA ÉTICA DE ESPINOSA
Para podermos tratar da teoria de Espinosa sobre os afetos, falaremos antes neste trabalho, resumidamente, de alguns conceitos desse autor que achamos necessários para a compreensão sobre a sua teoria.
O objetivo da Filosofia para Espinosa é a felicidade, a paz de espírito como efeito do conhecimento. Esse conhecer, para ele, se dá sempre através das causas. Assim chegamos ao conceito de Deus (ou Natureza – com maiúscula), como causa primeira de todas as coisas.
Esse Deus não é o padrão judaico-cristão, mas seria um Deus não transcendente, a substância infinita que se mostra em modos ou atributos (atributo seria uma forma de ser que contém a essência da substância, enquanto modo seria um efeito ou modificação da substância), em tudo que existe. Por exemplo, a extensão e o pensamento seriam dois desses modos. Entre todos esses modos, há um princípio de paralelismo. Se um corpo A afeta um corpo B (extensão), por exemplo, há uma idéia desse corpo A afetando a mente de B (pensamento). (Esse paralelismo se estende por todo o pensamento de Espinosa, logo, é válido também em todo este trabalho). Deus é também chamado de “Natureza naturante”, enquanto os infinitos modos são a “Natureza naturada”. Há uma diferença entre essas naturezas, mas não uma separação. Como esse Deus de Espinosa é ilimitado, não podemos dizer que o autor é panteísta, mas sim pananteísta.
Os indivíduos seriam compostos por partes articuladas, em diferentes graus de complexidade. A essência de um indivíduo seria a constância da relação em que essas partes são articuladas. Portanto, cada indivíduo tem algo de constante – sua essência – e algo de mutável – suas partes – que tendem a se transformar através do tempo, pelo contato com o meio ao seu redor. Essa essência, que se esforça para se manter, a partir da qual o indivíduo pode existir (no espaço-tempo), Espinosa chama de Conatus. Além desse esforço de autopreservação, o Conatus é também um esforço de auto-realização e auto-afirmação (potência de agir). Note-se que esses chamados “indivíduos” referem-se a tudo, todas as coisas, em todos os modos de Deus.
O livre-arbítrio seria, então, idéia ilusória, já que estaríamos sempre nos comportando baseados na nossa necessidade intrínseca (essência). A liberdade, para o autor, é a de escolher algo seguindo nosso conatus. Vale notar aqui, que nosso conatus, nossa potência de agir, é o poder de produzir efeitos em atos, de acordo com nossa essência. Com isso, já que não poderíamos fazer de modo diferente qualquer ato, dadas as nossas essências e as condições específicas externas a nós em cada momento. Essa é a base de seu determinismo absoluto ou necessitarismo.
Para passarmos ao estudo dos afetos é necessário explicitarmos os conceitos de idéias e causas adequadas e inadequadas. Idéias inadequadas sobre uma coisa A, seriam aquelas que projetam na coisa A em si, a impressão que o corpo (e/ou a mente) tem ao ser afetado pela coisa A. Por exemplo, a afirmação “O sol é um disco pequeno, a 200 pés de altitude”. Esse tipo de idéias não podem jamais ser comprovadas. São incompletas, parciais, ilusórias. Os outros tipos, as idéias adequadas, são as verdadeiras e necessárias (logo, comprováveis). São as idéias do intelecto. Exemplo: “Uma circunferência é o lugar geométrico em um plano, onde todos os pontos distam igualmente do centro.” Cabe aqui uma diferenciação do conceito de idéia entre Espinosa e Descartes. Para o último, as idéias representam objetos, mas não fazem um juízo sobre os mesmos (se são verdadeiros ou falsos). Esse juízo seria uma soma de idéia e vontade. Para Espinosa, a idéia já é um ato de julgar, e tendemos naturalmente a crer que qualquer idéia é verdadeira.
Quanto às causas adequadas e inadequadas de um dado efeito, as primeiras seriam aquelas que são todas as causas do efeito. As últimas, são causas apenas parciais do dado efeito. Ou seja, não bastam para explicar totalmente o efeito.
Os afetos seriam tipos de afecções que aumentam (alegres) ou diminuem (tristes) o nosso conatus. Se subdividem em ativos e passivos (paixões). Os ativos são sempre alegres, enquanto os passivos podem ser alegres ou tristes. Os afetos ativos ocorrem quando somos causa adequada de um efeito. E os passivos, quando há um efeito em nós de que somos apenas causa parcial, ou inadequada. Para Espinosa, o simples ato de contemplar, ou conhecer um afeto, já nos dá prazer (mesmo os tristes).
Com estes conceitos dados, podemos avançar numa subdivisão do conatus. Espinosa chama de vontade ao conatus quando referido somente à alma. E de apetite, quando referido à alma e ao corpo. Desejo é o apetite de que se têm consciência. Vale destacar que todos estes conceitos (apetite, vontade e desejo) são subdivisões do conatus. A consciência seria a idéia da idéia (duplicação reflexiva), e a idéia da idéia da idéia ad infinitum. Por exemplo: perceber que percebo uma porta. Ou seja: perceber em minha mente a idéia da porta. Isso pode acontecer com idéias adequadas (racionais) ou inadequadas (imaginativas, passivas). Em cada um dos casos, a duplicação das idéias mantém estas suas características (duplicação da idéia racional gera idéia da idéia racional e o mesmo ocorre com a imaginativa).
Podemos ter como exemplo de interpretação imaginativa falsa, a idéia de objetos ou valores éticos bons “em si”. Para Espinosa, não há nada bom ou ruim em si mesmo, mas o afeto que o objeto nos causa é que nos faz sentir bem (alegre, aumentando nosso conatus) ou mal (triste, diminuindo nosso conatus).
Ainda sobre a consciência, é válido distinguir aqui o conceito entre Descartes e Espinosa. Para o último, a consciência é o ponto de partida da Filosofia (“Cogito, ergo sum.” – “Penso, logo existo.”), enquanto que, para o primeiro, não é um conceito primitivo. Para Espinosa, o conhecimento se dá pelo contato com objetos. Esse contato é o que gera idéias e, assim, idéias de idéias, tornando o homem mais “consciente de si, de Deus e das coisas”, que é a definição de sábio para o autor. Vale ressaltar também que Espinosa não separa intelecto de vontade, não reduz todo o lado afetivo humano ao cognitivo nem reduz as paixões a meros juízos falsos.
Quando os afetos nos afetam como parte, são chamados de hilariedade (aumento de conatus) e melancolia (diminuição de conatus). Quando nos afetam como totalidade, são prazer (aumento de conatus) e dor (diminuição de conatus). Espinosa valoriza mais os afetos que nos atingem como uma totalidade. Por isso, em alguns casos, o desprazer indireto pode ser útil ao indivíduo, quando vem a compensar o excesso de prazer de uma parte em relação ao todo.
Os afetos primitivos (ou primários) são três: desejo (conatus), alegria (quando gera aumento do conatus) e tristeza (quando gera diminuição do conatus). Na verdade, alegria e tristeza são dois modos do conatus, assim como extensão e pensamento são dois atributos de Deus para o autor. Os dois afetos derivados fundamentais são: amor (alegria acompanhada da idéia da coisa exterior julgada causa dessa alegria) e ódio (tristeza acompanhada da idéia da coisa exterior julgada causa dessa tristeza).
As paixões tendem a ser obsessivas e alienantes por tendermos a ver o objeto que as causa, como causa única da nossa alegria ou tristeza, segundo Espinosa.
Na parte 3 da sua Ética, a partir da proposição XIV até a LIX, o autor passa a trabalhar mais detalhadamente essas relações entre os afetos, mas seria alongar demais este trabalho se estudar aqui profundamente de cada uma dessas teorias. Segue, então, um breve resumo de quatro delas, apenas:
Proposição XIV – Se duas afecções A e B são sentidas simultaneamente, no futuro, se formos afetados por A, seremos também por B (mesmo que B esteja ausente).
Proposição XV – Pode ocorrer um afeto por acidente (sem conexão lógica). Isto seria uma associação imaginativa, um indivíduo que pode ser causa de simpatia ou antipatia imediata para outro indivíduo sem nenhum motivo lógico, apenas pela associação por contigüidade, por exemplo.
Proposição XVI – Se um corpo A nos afeta habitualmente positivamente ou negativamente, e B é semelhante a A, então amaremos ou odiaremos B apenas por esta semelhança com A.
Proposição XVII – Um indivíduo, por ser composto por várias partes ou por ter algo semelhante a outro que nos causa um afeto contrário, pode nos afetar, ao mesmo tempo, positivamente e negativamente. Essa ambivalência afetiva é o que o autor chama de “flutuação da alma”.
Vale ressaltar aqui a complexidade das relações nesse sistema criado por Espinosa, onde devemos levar em consideração: as partes dos indivíduos variantes com o tempo, as diferentes intensidades dos afetos, a complexidades diferentes dos indivíduos etc.
É interessante notar que, como os afetos dependem sempre, pelo menos em parte, da essência do indivíduo, ele é sempre co-responsável por sua alegria ou tristeza. E mesmo idéias falsas, podem causar esses efeitos reais no indivíduo.
Para sermos mais felizes (ou para aumentarmos nosso conatus), o autor recomenda que tentemos aumentar ao máximo, mas dentro do possível para cada indivíduo, a quantidade de afetos ativos em nossas vidas, pois os mesmos são sempre alegres. Ou mesmo que tentemos compreender melhor cada afeto (e suas causas), mesmo os passivos ou os tristes, pois apenas isto já bastaria para uma maior felicidade.
Bibliografia:
ESPINOSA, B., Ética demonstrada à maneira dos geômetras. São Paulo: Abril Cultural, 1983. (Os Pensadores)
GLEIZER, M. Espinosa e a afetividade humana. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005.
(Fabio Rocha)
O objetivo da Filosofia para Espinosa é a felicidade, a paz de espírito como efeito do conhecimento. Esse conhecer, para ele, se dá sempre através das causas. Assim chegamos ao conceito de Deus (ou Natureza – com maiúscula), como causa primeira de todas as coisas.
Esse Deus não é o padrão judaico-cristão, mas seria um Deus não transcendente, a substância infinita que se mostra em modos ou atributos (atributo seria uma forma de ser que contém a essência da substância, enquanto modo seria um efeito ou modificação da substância), em tudo que existe. Por exemplo, a extensão e o pensamento seriam dois desses modos. Entre todos esses modos, há um princípio de paralelismo. Se um corpo A afeta um corpo B (extensão), por exemplo, há uma idéia desse corpo A afetando a mente de B (pensamento). (Esse paralelismo se estende por todo o pensamento de Espinosa, logo, é válido também em todo este trabalho). Deus é também chamado de “Natureza naturante”, enquanto os infinitos modos são a “Natureza naturada”. Há uma diferença entre essas naturezas, mas não uma separação. Como esse Deus de Espinosa é ilimitado, não podemos dizer que o autor é panteísta, mas sim pananteísta.
Os indivíduos seriam compostos por partes articuladas, em diferentes graus de complexidade. A essência de um indivíduo seria a constância da relação em que essas partes são articuladas. Portanto, cada indivíduo tem algo de constante – sua essência – e algo de mutável – suas partes – que tendem a se transformar através do tempo, pelo contato com o meio ao seu redor. Essa essência, que se esforça para se manter, a partir da qual o indivíduo pode existir (no espaço-tempo), Espinosa chama de Conatus. Além desse esforço de autopreservação, o Conatus é também um esforço de auto-realização e auto-afirmação (potência de agir). Note-se que esses chamados “indivíduos” referem-se a tudo, todas as coisas, em todos os modos de Deus.
O livre-arbítrio seria, então, idéia ilusória, já que estaríamos sempre nos comportando baseados na nossa necessidade intrínseca (essência). A liberdade, para o autor, é a de escolher algo seguindo nosso conatus. Vale notar aqui, que nosso conatus, nossa potência de agir, é o poder de produzir efeitos em atos, de acordo com nossa essência. Com isso, já que não poderíamos fazer de modo diferente qualquer ato, dadas as nossas essências e as condições específicas externas a nós em cada momento. Essa é a base de seu determinismo absoluto ou necessitarismo.
Para passarmos ao estudo dos afetos é necessário explicitarmos os conceitos de idéias e causas adequadas e inadequadas. Idéias inadequadas sobre uma coisa A, seriam aquelas que projetam na coisa A em si, a impressão que o corpo (e/ou a mente) tem ao ser afetado pela coisa A. Por exemplo, a afirmação “O sol é um disco pequeno, a 200 pés de altitude”. Esse tipo de idéias não podem jamais ser comprovadas. São incompletas, parciais, ilusórias. Os outros tipos, as idéias adequadas, são as verdadeiras e necessárias (logo, comprováveis). São as idéias do intelecto. Exemplo: “Uma circunferência é o lugar geométrico em um plano, onde todos os pontos distam igualmente do centro.” Cabe aqui uma diferenciação do conceito de idéia entre Espinosa e Descartes. Para o último, as idéias representam objetos, mas não fazem um juízo sobre os mesmos (se são verdadeiros ou falsos). Esse juízo seria uma soma de idéia e vontade. Para Espinosa, a idéia já é um ato de julgar, e tendemos naturalmente a crer que qualquer idéia é verdadeira.
Quanto às causas adequadas e inadequadas de um dado efeito, as primeiras seriam aquelas que são todas as causas do efeito. As últimas, são causas apenas parciais do dado efeito. Ou seja, não bastam para explicar totalmente o efeito.
Os afetos seriam tipos de afecções que aumentam (alegres) ou diminuem (tristes) o nosso conatus. Se subdividem em ativos e passivos (paixões). Os ativos são sempre alegres, enquanto os passivos podem ser alegres ou tristes. Os afetos ativos ocorrem quando somos causa adequada de um efeito. E os passivos, quando há um efeito em nós de que somos apenas causa parcial, ou inadequada. Para Espinosa, o simples ato de contemplar, ou conhecer um afeto, já nos dá prazer (mesmo os tristes).
Com estes conceitos dados, podemos avançar numa subdivisão do conatus. Espinosa chama de vontade ao conatus quando referido somente à alma. E de apetite, quando referido à alma e ao corpo. Desejo é o apetite de que se têm consciência. Vale destacar que todos estes conceitos (apetite, vontade e desejo) são subdivisões do conatus. A consciência seria a idéia da idéia (duplicação reflexiva), e a idéia da idéia da idéia ad infinitum. Por exemplo: perceber que percebo uma porta. Ou seja: perceber em minha mente a idéia da porta. Isso pode acontecer com idéias adequadas (racionais) ou inadequadas (imaginativas, passivas). Em cada um dos casos, a duplicação das idéias mantém estas suas características (duplicação da idéia racional gera idéia da idéia racional e o mesmo ocorre com a imaginativa).
Podemos ter como exemplo de interpretação imaginativa falsa, a idéia de objetos ou valores éticos bons “em si”. Para Espinosa, não há nada bom ou ruim em si mesmo, mas o afeto que o objeto nos causa é que nos faz sentir bem (alegre, aumentando nosso conatus) ou mal (triste, diminuindo nosso conatus).
Ainda sobre a consciência, é válido distinguir aqui o conceito entre Descartes e Espinosa. Para o último, a consciência é o ponto de partida da Filosofia (“Cogito, ergo sum.” – “Penso, logo existo.”), enquanto que, para o primeiro, não é um conceito primitivo. Para Espinosa, o conhecimento se dá pelo contato com objetos. Esse contato é o que gera idéias e, assim, idéias de idéias, tornando o homem mais “consciente de si, de Deus e das coisas”, que é a definição de sábio para o autor. Vale ressaltar também que Espinosa não separa intelecto de vontade, não reduz todo o lado afetivo humano ao cognitivo nem reduz as paixões a meros juízos falsos.
Quando os afetos nos afetam como parte, são chamados de hilariedade (aumento de conatus) e melancolia (diminuição de conatus). Quando nos afetam como totalidade, são prazer (aumento de conatus) e dor (diminuição de conatus). Espinosa valoriza mais os afetos que nos atingem como uma totalidade. Por isso, em alguns casos, o desprazer indireto pode ser útil ao indivíduo, quando vem a compensar o excesso de prazer de uma parte em relação ao todo.
Os afetos primitivos (ou primários) são três: desejo (conatus), alegria (quando gera aumento do conatus) e tristeza (quando gera diminuição do conatus). Na verdade, alegria e tristeza são dois modos do conatus, assim como extensão e pensamento são dois atributos de Deus para o autor. Os dois afetos derivados fundamentais são: amor (alegria acompanhada da idéia da coisa exterior julgada causa dessa alegria) e ódio (tristeza acompanhada da idéia da coisa exterior julgada causa dessa tristeza).
As paixões tendem a ser obsessivas e alienantes por tendermos a ver o objeto que as causa, como causa única da nossa alegria ou tristeza, segundo Espinosa.
Na parte 3 da sua Ética, a partir da proposição XIV até a LIX, o autor passa a trabalhar mais detalhadamente essas relações entre os afetos, mas seria alongar demais este trabalho se estudar aqui profundamente de cada uma dessas teorias. Segue, então, um breve resumo de quatro delas, apenas:
Proposição XIV – Se duas afecções A e B são sentidas simultaneamente, no futuro, se formos afetados por A, seremos também por B (mesmo que B esteja ausente).
Proposição XV – Pode ocorrer um afeto por acidente (sem conexão lógica). Isto seria uma associação imaginativa, um indivíduo que pode ser causa de simpatia ou antipatia imediata para outro indivíduo sem nenhum motivo lógico, apenas pela associação por contigüidade, por exemplo.
Proposição XVI – Se um corpo A nos afeta habitualmente positivamente ou negativamente, e B é semelhante a A, então amaremos ou odiaremos B apenas por esta semelhança com A.
Proposição XVII – Um indivíduo, por ser composto por várias partes ou por ter algo semelhante a outro que nos causa um afeto contrário, pode nos afetar, ao mesmo tempo, positivamente e negativamente. Essa ambivalência afetiva é o que o autor chama de “flutuação da alma”.
Vale ressaltar aqui a complexidade das relações nesse sistema criado por Espinosa, onde devemos levar em consideração: as partes dos indivíduos variantes com o tempo, as diferentes intensidades dos afetos, a complexidades diferentes dos indivíduos etc.
É interessante notar que, como os afetos dependem sempre, pelo menos em parte, da essência do indivíduo, ele é sempre co-responsável por sua alegria ou tristeza. E mesmo idéias falsas, podem causar esses efeitos reais no indivíduo.
Para sermos mais felizes (ou para aumentarmos nosso conatus), o autor recomenda que tentemos aumentar ao máximo, mas dentro do possível para cada indivíduo, a quantidade de afetos ativos em nossas vidas, pois os mesmos são sempre alegres. Ou mesmo que tentemos compreender melhor cada afeto (e suas causas), mesmo os passivos ou os tristes, pois apenas isto já bastaria para uma maior felicidade.
Bibliografia:
ESPINOSA, B., Ética demonstrada à maneira dos geômetras. São Paulo: Abril Cultural, 1983. (Os Pensadores)
GLEIZER, M. Espinosa e a afetividade humana. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005.
(Fabio Rocha)
O poder da mídia e a Matrix nossa de cada dia - uma outra visão sobre a invasão do "Complexo do Alemão"
Ouvindo os debates da UFRJ, sobre violência e mídia ( http://www.pol.org.br/midia/assistaaovivo.cfm ), pela internet (uma mídia maravilhosa, a meu ver). Único lugar onde falam sobre a "chacina do Pan", a glorificação do policial matador de favelados do "Complexo do Alemão", negros e pobres, enquanto só os brancos de classe média são as vítimas mostradas nos telejornais, pensei em um trabalho filosófico a ser desenvolvido - e espalhado - urgentemente...
Todos sabemos da decadência da educação nos últimos anos. Falemos do Brasil, por exemplo. Se aprendia até Latim no segundo grau, enquanto hoje em dia a luta é pela não obrigatoriedade da aprovação dos alunos (visando números bonitos, certamente), tenham aprendido eles o que quer que seja.
Pois bem, por outro lado, a TV se espalhou para 90% das casas brasileiras (mais que geladeiras! - 80%). E a Globo (velha raposa conservadora, que, no mínimo, esteve bem caladinha na ditadura militar) comanda pelo menos o lado que quero analisar, a "informação jornalística", mesmo fora da TV, sendo imitada como padrão pelas outras 4 famílias que controlam a TV aberta. Ao mesmo tempo, as universidades se tornaram guetos, com linguagens herméticas e teorias sem vida (nos sentido Nietzchiano), cada vez mais afastadas da maioria da população. Com esses dois fatores, o poder de manipular o real a seu bel prazer, ficou nas mãos de quem controla a TV. Os jornais (e também essas novelas horríveis de hoje, líderes de audiência) ditam os valores éticos a serem seguidos, escolhem como mostrar os fatos, e que fatos mostrar para 90% DA POPULAÇÃO BRASILEIRA! Quem já percebeu que o que chamamos de realidade é apenas uma visão, uma perspectiva, um corte particular, pode imaginar o malefício dessa concentração de poder.
A imprensa segue quase sempre sem mostrar dados estatísticos reais, como o percentual de carros assaltados em relação aos que não são assaltados mensalmente na linha amarela, por exemplo. O medo vende jornal... Mas é pior: geralmente tendem a mostrar â violência dos negros e pobres contra a classe média, como que já previamente justificando uma repressão do Estado conta o chamado "criminoso" (favelado, negro e pobre - como a chacina mais recente no "Complexo do Alemão"). E a versão única dos fatos fica sendo - pasmem - a dos policiais. Informação imparcialíssima!
Confesso que parei de ver novelas e telejornais ou ler jornais ou revistas há um bom tempo. E como a vida ficou mais positiva, mais leve, com menos medo... Essas palestras da UFRJ sobre mídia e psicologia me serviram para mostrar alguns motivos mais claros para isso que eu apenas senti.
Espero que esse texto esteja claro, útil e nada hermético... E espero que a internet dure muito tempo, última mídia ainda livre para qualquer um poder escrever e ler algo assim.
(Fabio Rocha)
Todos sabemos da decadência da educação nos últimos anos. Falemos do Brasil, por exemplo. Se aprendia até Latim no segundo grau, enquanto hoje em dia a luta é pela não obrigatoriedade da aprovação dos alunos (visando números bonitos, certamente), tenham aprendido eles o que quer que seja.
Pois bem, por outro lado, a TV se espalhou para 90% das casas brasileiras (mais que geladeiras! - 80%). E a Globo (velha raposa conservadora, que, no mínimo, esteve bem caladinha na ditadura militar) comanda pelo menos o lado que quero analisar, a "informação jornalística", mesmo fora da TV, sendo imitada como padrão pelas outras 4 famílias que controlam a TV aberta. Ao mesmo tempo, as universidades se tornaram guetos, com linguagens herméticas e teorias sem vida (nos sentido Nietzchiano), cada vez mais afastadas da maioria da população. Com esses dois fatores, o poder de manipular o real a seu bel prazer, ficou nas mãos de quem controla a TV. Os jornais (e também essas novelas horríveis de hoje, líderes de audiência) ditam os valores éticos a serem seguidos, escolhem como mostrar os fatos, e que fatos mostrar para 90% DA POPULAÇÃO BRASILEIRA! Quem já percebeu que o que chamamos de realidade é apenas uma visão, uma perspectiva, um corte particular, pode imaginar o malefício dessa concentração de poder.
A imprensa segue quase sempre sem mostrar dados estatísticos reais, como o percentual de carros assaltados em relação aos que não são assaltados mensalmente na linha amarela, por exemplo. O medo vende jornal... Mas é pior: geralmente tendem a mostrar â violência dos negros e pobres contra a classe média, como que já previamente justificando uma repressão do Estado conta o chamado "criminoso" (favelado, negro e pobre - como a chacina mais recente no "Complexo do Alemão"). E a versão única dos fatos fica sendo - pasmem - a dos policiais. Informação imparcialíssima!
Confesso que parei de ver novelas e telejornais ou ler jornais ou revistas há um bom tempo. E como a vida ficou mais positiva, mais leve, com menos medo... Essas palestras da UFRJ sobre mídia e psicologia me serviram para mostrar alguns motivos mais claros para isso que eu apenas senti.
Espero que esse texto esteja claro, útil e nada hermético... E espero que a internet dure muito tempo, última mídia ainda livre para qualquer um poder escrever e ler algo assim.
(Fabio Rocha)
ÉTICA A NICÔMACO: A FELICIDADE PARA ARISTÓTELES
A escolha do tema deste trabalho surgiu com uma interpretação gradual, à medida em que se lia vários trechos do “Ética para Nicômaco”, do que era o conceito de felicidade para Aristóteles. Com essa nova (e bela) visão do que era “ser feliz”, pareceu-me fundamental contrastar aqui essa perspectiva com a que temos hoje da felicidade, tão absurdamente distante e, como o próprio Aristóteles diz, “infantil”. Portanto, não escolhi aqui um trecho apenas da sua obra, mas tentarei resumir dos livros 1 e 10 da Ética, o que era a felicidade.
Hoje, pode-se afirmar que a imensa maioria da população passa seus dias em atividades de que não gosta (trabalho), aspirando ganhar na loteria ou tentando acumular dinheiro para justamente poder parar com essa atividade desprazerosa e, ainda assim, sobreviver. As horas que sobram no fim do dia, geralmente são desperdiçadas assistindo-se passivamente televisão ou outro tipo de “passatempo”, onde a felicidade é vendida pelo marketing como objetos a serem comprados, status, fama, ou seja, pequenos prazeres ou recompensas por um trabalho sem prazer nenhum. Mas diz Aristóteles:
“Ora, esforçar-se e trabalhar com vistas na recreação parece coisa tola e absolutamente infantil. (...) A relaxação, por conseguinte, não é um fim, pois nós a cultivamos com vistas na atividade.” (livro 10, capítulo 6).
O conceito de felicidade para Aristóteles é inverso a essa vontade de parar, esse cansaço (talvez causado por uma falta de rumo, de propósito) que nos assola. Também difere de um estado passageiro, por termos comprado um carro novo, por exemplo. Para o autor, felicidade é agir. Constantemente. E agir bem, graciosamente, na justa medida: no tempo correto, na intensidade correta, na direção correta, buscando cuidadosamente a excelência de cada ato. Com o mesmo cuidado que um bom poeta tem com cada palavra em seus versos. Como o guerreiro grego que Nietzsche exalta em suas obras. Ética ligada a estética. Atividade bela e vital! Lembra, inclusive, o conceito nietzscheano de fazer da própria vida uma obra de arte. Nas palavras de Aristóteles:
“Os primeiros (se referindo ao “vulgo”, diferenciando-o dos “sábios”) pensam que seja alguma coisa simples e óbvia (a felicidade), como o prazer, a riqueza ou as honras (...) como a saúde quando se está doente ou como a riqueza quando se é pobre.” (livro 1, capítulo 4).
Agora, notemos a distância disso tudo com ganhar na loteria para poder não fazer nada... E a importância de repensar urgentemente a felicidade, hoje.
Esse movimento não é individualista, como pensamos a felicidade contemporânea. Ao contrário. É belo também por visar o bem geral, o bem político (lembrando que a expressão político vem da pólis grega, totalmente diferente do conceito atual de política, aplicado a países, estados ou cidades enormes, com uma enormidade de pessoas, leis e instituições desconhecidas, onde se perde com muito mais facilidade a idéia de bem comum). No livro 1, isso fica bem claro nas passagens abaixo, sobre a política:
“Ninguém duvidará de que seu estudo pertença à arte mais prestigiosa e que mais verdadeiramente se pode chamar de arte mestra. (...) a finalidade dessa ciência deve abranger as das outras , de modo que essa finalidade será o bem humano .” (livro 1, capítulo 2).
“O objetivo da vida política é o melhor dos fins, e essa ciência dedica o melhor de seus esforços a fazer com que seus cidadãos sejam bons e capazes de nobres ações.” (livro 1, capítulo 9).
Cabe aqui um parágrafo para aprofundar um pouco mais a noção de bem para Aristóteles. Essa busca pelo bem, ou pelo “sumo bem” Aristotélico, não tem nada em comum com o conceito de bem cristão que nos vem logo a mente hoje ao se falar de “bem”. Não é um bem ligado à bondade e resignação. Mas sim um bem viver, ligado a excelência (bem fazer). E também não é uma idealização retórica ou utópica, separada de nossa vida prática. É algo que podemos efetivamente alcançar em nosso agir, nos tornando mais felizes em cada mínimo ato:
“O que nós buscamos aqui é algo de atingível .” (livro 1, capítulo 6).
Voltando ao tema da felicidade, o seu ponto máximo, mais constante, duradouro e prazeroso, para Aristóteles, seria gerado pela atividade contemplativa. O prazer completa essa atividade, tornando-a um fim em si mesma. Prazer que se confunde com vida, movimento, atividade, criação.
Essa atividade de “viver de acordo com o que há de melhor em nós”, só seria possível graças a um pequeno detalhe presente no homem: o Nous. Detalhe esse que nos diferencia dos outros animais e nos dá a possibilidade de se aproximar dos deuses, do todo, do eterno. Nos imortaliza. Uma obra de arte humana que me dá sempre essa impressão é a música clássica, que inspirou o poema com que termino este trabalho:
NOTURNO
Não, não nos basta
o chão.
Por isso, é preciso
vestir-se de estrelas
e cavalgar o sonho
no ritmo do divino.
Esmagados contra a terra
pela grave e forte gravidade
voltamos a face para o céu.
Na alma humana
cabe o universo infinito.
(Fabio Rocha - 14/08/04 )
Bibliografia:
ARISTÓTELES. São Paulo, Ed. Abril Cultural, 1973 (Os Pensadores).
(Fabio Rocha)
---
PARTE 2 - Como a atividade contemplativa sabe aproveitar como feliz “cada pequeno momento”?
Pensei em uma resposta para essa difícil questão, enquanto estudava a poética de Bachelard. Para ele, a imagem poética, além de romper com a noção de causalidade, deve ser percebida a cada instante. É de um tempo caótico, instantâneo. Essa imagem não sobrevive com a mesma força após uma análise psicanalítica do passado do poeta (que é justamente a crítica de Bachelard à Freud – que, quando faz esse tipo de psicanálise racional da arte, “Explica a flor pelo estrume.”), muito menos uma origem no mundo real como base para sua criação. É uma criação de nova realidade, uma sobre-realidade, uma surrealidade (Bachelard foi contemporâneo do movimento surrealista, inclusive). Instantânea no poeta ao fazer o poema e no leitor, quando lê o mesmo, sempre totalmente subjetiva.
Bachelard se assemelha a Aristóteles ao ligar a felicidade à ação, negando a imagem estática do Pensador (escultura de Rodin), sentado, com a mão apoiando o queixo, aparentemente com a mente longe, perdida em divagações, enquanto o corpo se mantém imóvel, sem nenhuma atividade prática:
“a mão operante e trabalhadora de que fala é a mão feliz, a serviço de ‘forças felizes’ porque forças criadoras.” (Páginas xx e xxi)
A linguagem é um limitador para se poder explicar a questão prática de como aproveitar feliz cada instante, mas acho que estas definições de Bachelard nos ajudam a, pelo menos, nos aproximar de uma resposta, que já havia na própria ética de Aristóteles: vivermos plenamente no momento (instantâneo) presente. Tão simples de teorizar quando difícil de executar (e mais ainda de manter-se executando constantemente).
Mas como seria esse viver pleno? Agindo, criando, com corpo e mente abertos, alertas para a justa medida, para a excelência e raridade de cada ato, com uma percepção - noética - capaz de sentir o todo, a physis, indo além dos sentidos (Os quatro elementos, tão utilizados pelos Pré-socráticos, por exemplo, seriam, como “sonhos fundamentais”, uma forma de percepção maior, do simbólico, do além dos sentidos, para Bachelard. Ar, terra, água e fogo como símbolos, arquétipos universais, que o autor chamou de “componente material de toda imagem poética”).
Utilizando um caráter mais imagético e menos racional, podemos citar novamente Bachelard:
“... a imagem poética existe sob o signo de um ser novo. Esse ser novo é o homem feliz..” (página xxix).
Mas uma resposta definitiva, um modo de manter esse estado corpóreo e mental sempre, constante, é algo que não consegui. E que talvez seja mesmo inalcançável para a condição humana. Porém, como Platão disse sobre sua República, mesmo que não seja objetivamente possível, penso ser muito válido discutirmos o tema.
Bibliografia:
ARISTÓTELES. São Paulo, Ed. Abril Cultural, 1973 (Os Pensadores).
BACHELARD, G. O direito de sonhar. Introdução (de José Américo Motta Pessanha).
PLATÃO. A República. São Paulo: Martin Claret, 2006.
OBS: Trabalho apresentado na 1a Semana de Graduação de Filosofia da UERJ, em 17/10/2007.
(Fabio Rocha)
Hoje, pode-se afirmar que a imensa maioria da população passa seus dias em atividades de que não gosta (trabalho), aspirando ganhar na loteria ou tentando acumular dinheiro para justamente poder parar com essa atividade desprazerosa e, ainda assim, sobreviver. As horas que sobram no fim do dia, geralmente são desperdiçadas assistindo-se passivamente televisão ou outro tipo de “passatempo”, onde a felicidade é vendida pelo marketing como objetos a serem comprados, status, fama, ou seja, pequenos prazeres ou recompensas por um trabalho sem prazer nenhum. Mas diz Aristóteles:
“Ora, esforçar-se e trabalhar com vistas na recreação parece coisa tola e absolutamente infantil. (...) A relaxação, por conseguinte, não é um fim, pois nós a cultivamos com vistas na atividade.” (livro 10, capítulo 6).
O conceito de felicidade para Aristóteles é inverso a essa vontade de parar, esse cansaço (talvez causado por uma falta de rumo, de propósito) que nos assola. Também difere de um estado passageiro, por termos comprado um carro novo, por exemplo. Para o autor, felicidade é agir. Constantemente. E agir bem, graciosamente, na justa medida: no tempo correto, na intensidade correta, na direção correta, buscando cuidadosamente a excelência de cada ato. Com o mesmo cuidado que um bom poeta tem com cada palavra em seus versos. Como o guerreiro grego que Nietzsche exalta em suas obras. Ética ligada a estética. Atividade bela e vital! Lembra, inclusive, o conceito nietzscheano de fazer da própria vida uma obra de arte. Nas palavras de Aristóteles:
“Os primeiros (se referindo ao “vulgo”, diferenciando-o dos “sábios”) pensam que seja alguma coisa simples e óbvia (a felicidade), como o prazer, a riqueza ou as honras (...) como a saúde quando se está doente ou como a riqueza quando se é pobre.” (livro 1, capítulo 4).
Agora, notemos a distância disso tudo com ganhar na loteria para poder não fazer nada... E a importância de repensar urgentemente a felicidade, hoje.
Esse movimento não é individualista, como pensamos a felicidade contemporânea. Ao contrário. É belo também por visar o bem geral, o bem político (lembrando que a expressão político vem da pólis grega, totalmente diferente do conceito atual de política, aplicado a países, estados ou cidades enormes, com uma enormidade de pessoas, leis e instituições desconhecidas, onde se perde com muito mais facilidade a idéia de bem comum). No livro 1, isso fica bem claro nas passagens abaixo, sobre a política:
“Ninguém duvidará de que seu estudo pertença à arte mais prestigiosa e que mais verdadeiramente se pode chamar de arte mestra. (...) a finalidade dessa ciência deve abranger as das outras , de modo que essa finalidade será o bem humano .” (livro 1, capítulo 2).
“O objetivo da vida política é o melhor dos fins, e essa ciência dedica o melhor de seus esforços a fazer com que seus cidadãos sejam bons e capazes de nobres ações.” (livro 1, capítulo 9).
Cabe aqui um parágrafo para aprofundar um pouco mais a noção de bem para Aristóteles. Essa busca pelo bem, ou pelo “sumo bem” Aristotélico, não tem nada em comum com o conceito de bem cristão que nos vem logo a mente hoje ao se falar de “bem”. Não é um bem ligado à bondade e resignação. Mas sim um bem viver, ligado a excelência (bem fazer). E também não é uma idealização retórica ou utópica, separada de nossa vida prática. É algo que podemos efetivamente alcançar em nosso agir, nos tornando mais felizes em cada mínimo ato:
“O que nós buscamos aqui é algo de atingível .” (livro 1, capítulo 6).
Voltando ao tema da felicidade, o seu ponto máximo, mais constante, duradouro e prazeroso, para Aristóteles, seria gerado pela atividade contemplativa. O prazer completa essa atividade, tornando-a um fim em si mesma. Prazer que se confunde com vida, movimento, atividade, criação.
Essa atividade de “viver de acordo com o que há de melhor em nós”, só seria possível graças a um pequeno detalhe presente no homem: o Nous. Detalhe esse que nos diferencia dos outros animais e nos dá a possibilidade de se aproximar dos deuses, do todo, do eterno. Nos imortaliza. Uma obra de arte humana que me dá sempre essa impressão é a música clássica, que inspirou o poema com que termino este trabalho:
NOTURNO
Não, não nos basta
o chão.
Por isso, é preciso
vestir-se de estrelas
e cavalgar o sonho
no ritmo do divino.
Esmagados contra a terra
pela grave e forte gravidade
voltamos a face para o céu.
Na alma humana
cabe o universo infinito.
(Fabio Rocha - 14/08/04 )
Bibliografia:
ARISTÓTELES. São Paulo, Ed. Abril Cultural, 1973 (Os Pensadores).
(Fabio Rocha)
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PARTE 2 - Como a atividade contemplativa sabe aproveitar como feliz “cada pequeno momento”?
Pensei em uma resposta para essa difícil questão, enquanto estudava a poética de Bachelard. Para ele, a imagem poética, além de romper com a noção de causalidade, deve ser percebida a cada instante. É de um tempo caótico, instantâneo. Essa imagem não sobrevive com a mesma força após uma análise psicanalítica do passado do poeta (que é justamente a crítica de Bachelard à Freud – que, quando faz esse tipo de psicanálise racional da arte, “Explica a flor pelo estrume.”), muito menos uma origem no mundo real como base para sua criação. É uma criação de nova realidade, uma sobre-realidade, uma surrealidade (Bachelard foi contemporâneo do movimento surrealista, inclusive). Instantânea no poeta ao fazer o poema e no leitor, quando lê o mesmo, sempre totalmente subjetiva.
Bachelard se assemelha a Aristóteles ao ligar a felicidade à ação, negando a imagem estática do Pensador (escultura de Rodin), sentado, com a mão apoiando o queixo, aparentemente com a mente longe, perdida em divagações, enquanto o corpo se mantém imóvel, sem nenhuma atividade prática:
“a mão operante e trabalhadora de que fala é a mão feliz, a serviço de ‘forças felizes’ porque forças criadoras.” (Páginas xx e xxi)
A linguagem é um limitador para se poder explicar a questão prática de como aproveitar feliz cada instante, mas acho que estas definições de Bachelard nos ajudam a, pelo menos, nos aproximar de uma resposta, que já havia na própria ética de Aristóteles: vivermos plenamente no momento (instantâneo) presente. Tão simples de teorizar quando difícil de executar (e mais ainda de manter-se executando constantemente).
Mas como seria esse viver pleno? Agindo, criando, com corpo e mente abertos, alertas para a justa medida, para a excelência e raridade de cada ato, com uma percepção - noética - capaz de sentir o todo, a physis, indo além dos sentidos (Os quatro elementos, tão utilizados pelos Pré-socráticos, por exemplo, seriam, como “sonhos fundamentais”, uma forma de percepção maior, do simbólico, do além dos sentidos, para Bachelard. Ar, terra, água e fogo como símbolos, arquétipos universais, que o autor chamou de “componente material de toda imagem poética”).
Utilizando um caráter mais imagético e menos racional, podemos citar novamente Bachelard:
“... a imagem poética existe sob o signo de um ser novo. Esse ser novo é o homem feliz..” (página xxix).
Mas uma resposta definitiva, um modo de manter esse estado corpóreo e mental sempre, constante, é algo que não consegui. E que talvez seja mesmo inalcançável para a condição humana. Porém, como Platão disse sobre sua República, mesmo que não seja objetivamente possível, penso ser muito válido discutirmos o tema.
Bibliografia:
ARISTÓTELES. São Paulo, Ed. Abril Cultural, 1973 (Os Pensadores).
BACHELARD, G. O direito de sonhar. Introdução (de José Américo Motta Pessanha).
PLATÃO. A República. São Paulo: Martin Claret, 2006.
OBS: Trabalho apresentado na 1a Semana de Graduação de Filosofia da UERJ, em 17/10/2007.
(Fabio Rocha)
SEGUNDA CONSIDERAÇÃO INTEMPESTIVA DE NIETZSCHE: ANÁLISE DA HISTÓRIA MONUMENTAL
Este trabalho trata do capítulo 2 da “Segunda consideração intempestiva (da utilidade e desvantagem da história para a vida)” de Nietzsche. Mais especificamente, sobre as páginas 18 a 25, onde Nietzsche trata da chamada “história monumental”.
Este tipo de história é buscado pelo homem de ação, o homem que não quer olhar para o passado como um tesouro antigo onde pode acumular “distração ou excitação”. Não é um estudo resignado de detalhes inúteis da História, nem de momentos maravilhosos do passado como passado, como curiosidade apenas, que não seja capaz de trazer sua força à ação atual. Esse homem de ação Nietzscheano, não é um egoísta. Pensa em um povo ou na humanidade como um todo, quer trazer a força dos momentos grandiosos do passado ao momento presente, vivificando-o. A face positiva da história monumental é descrita lindamente na passagem:
“Que os grandes momentos na luta dos indivíduos formem uma corrente, que como uma cadeia de montanhas liguem a espécie humana através dos milênios, que, para mim, o fato de o ápice de um momento já há muito passado ainda esteja vivo, claro e grandioso – este é o pensamento fundamental da crença em uma humanidade, pensamento que se expressa pela exigência de uma história monumental.” (p. 19)
Acredito, como Bachelard, na força da imaginação e da imagem poética (que muitas vezes chega a locais inacessíveis ao nosso puro racionalismo), e acredito ser válido citar aqui outra imagem que enriquece o conceito nietzscheano de história monumental:
“esta difícil corrida de tochas característica da história monumental, onde apenas o que é grande sobrevive!” (p. 19)
Este caminho grandioso e belo, caminho para a imortalidade nunca é fácil. “O belo é difícil”, como escreveu Platão (A República – livro VI – 497). A dificuldade se dá pelo não reconhecimento da grandiosidade e beleza pelos contemporâneos desse homem de ação, que carrega a tocha que os grandes homens do passado lhe passaram. Porém os túmulos não são o destino final desses homens, para Nietzsche:
“uma coisa irá viver, o monograma de sua essência mais íntima, uma obra, um feito, uma rara iluminação, uma criação: ela viverá porque a posteridade não poderá prescindir dela.” (p. 20)
E do mesmo modo que este homem de ação, criador do grandioso no momento presente, pegou a tocha dos grandes homens do passado, sua obra será a tocha a encorajar os homens do futuro. Pois se foi possível a grandeza no passado, “será, algum dia possível novamente”. Aliás, não seria essa também a parte boa da história da Filosofia?
Esta fé em si mesmo como ativo, como parte do mundo, capaz de criticar, analisar e transformar o presente, é essencial no momento em que vivemos, egoístas sem visão do todo, treinados para sermos passivos, uniformes e não criadores desde a pré-escola, passando pelo dogmatismo das igrejas e culminando com trabalhos sem beleza, prazer nem criatividade, que têm como fim último o salário para a sobrevivência. Aceitamos tudo que nos é dado com um conformismo crescente e uma alienação protuberante! A globalização e o neoliberalismo são ótimos exemplos contemporâneos de processos internacionais que facilmente convenceram a quase totalidade da raça humana de sua irreversibilidade. Isso mostra o tamanho do problema contemporâneo, que é basicamente, a meu ver, filosófico.
O compositor Yanni tem um pensamento que se encaixa perfeitamente nessa visão encorajadora de uma postura ativa no mundo: “Everything great that has ever happened in humanity since the beginning has begun as a single thought in someone’s mind.” (Frase dita no show “Live At Acropolis”, na Grécia, em 1994.)
Apresentei até aqui a face positiva da história monumental. Mas a mesma também pode ser mal utilizada, trazendo desvantagem para a vida. Para Nietzsche, essas suas faces degeneradas consistiriam em:
1. Induzir ao exagero (“impele os corajosos à temeridade, os entusiasmados ao fanatismo”- ps. 22-23);
2. Servir como desculpa para “egoístas talentosos” a usarem em proveito próprio, para convencer as massas e causar revoluções políticas a seu bel-prazer;
3. Não deixar o grande surgir no presente (“Vede, o grande já está aí!” – p. 24), quando “impotentes” se apoderam dela (“os mortos enterrarem os vivos” – p.24)
Esta terceira face é mais explorada pelo autor, desenvolvendo-se daí uma crítica aos críticos, inclusive de arte. Nietzsche, como Aristóteles em sua Ética, valoriza o homem de ação, o homem feliz, o homem que cria, em relação àquele que:
“fica apenas olhando e não coloca ele mesmo as mãos na massa.” (p. 23)
Esse que olha é o crítico, que tem ódio dos criadores do grande, ódio causado por sua pequenez. E a sua vingança é justamente tentar enterrar esses vivos (realmente vivos) com a grandeza dos mortos (do passado).
Bibliografia:
NIETZSCHE, F. Segunda consideração intempestiva. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2003.
PLATÃO. A República. São Paulo: Martin Claret, 2006.
(Fabio Rocha)
Este tipo de história é buscado pelo homem de ação, o homem que não quer olhar para o passado como um tesouro antigo onde pode acumular “distração ou excitação”. Não é um estudo resignado de detalhes inúteis da História, nem de momentos maravilhosos do passado como passado, como curiosidade apenas, que não seja capaz de trazer sua força à ação atual. Esse homem de ação Nietzscheano, não é um egoísta. Pensa em um povo ou na humanidade como um todo, quer trazer a força dos momentos grandiosos do passado ao momento presente, vivificando-o. A face positiva da história monumental é descrita lindamente na passagem:
“Que os grandes momentos na luta dos indivíduos formem uma corrente, que como uma cadeia de montanhas liguem a espécie humana através dos milênios, que, para mim, o fato de o ápice de um momento já há muito passado ainda esteja vivo, claro e grandioso – este é o pensamento fundamental da crença em uma humanidade, pensamento que se expressa pela exigência de uma história monumental.” (p. 19)
Acredito, como Bachelard, na força da imaginação e da imagem poética (que muitas vezes chega a locais inacessíveis ao nosso puro racionalismo), e acredito ser válido citar aqui outra imagem que enriquece o conceito nietzscheano de história monumental:
“esta difícil corrida de tochas característica da história monumental, onde apenas o que é grande sobrevive!” (p. 19)
Este caminho grandioso e belo, caminho para a imortalidade nunca é fácil. “O belo é difícil”, como escreveu Platão (A República – livro VI – 497). A dificuldade se dá pelo não reconhecimento da grandiosidade e beleza pelos contemporâneos desse homem de ação, que carrega a tocha que os grandes homens do passado lhe passaram. Porém os túmulos não são o destino final desses homens, para Nietzsche:
“uma coisa irá viver, o monograma de sua essência mais íntima, uma obra, um feito, uma rara iluminação, uma criação: ela viverá porque a posteridade não poderá prescindir dela.” (p. 20)
E do mesmo modo que este homem de ação, criador do grandioso no momento presente, pegou a tocha dos grandes homens do passado, sua obra será a tocha a encorajar os homens do futuro. Pois se foi possível a grandeza no passado, “será, algum dia possível novamente”. Aliás, não seria essa também a parte boa da história da Filosofia?
Esta fé em si mesmo como ativo, como parte do mundo, capaz de criticar, analisar e transformar o presente, é essencial no momento em que vivemos, egoístas sem visão do todo, treinados para sermos passivos, uniformes e não criadores desde a pré-escola, passando pelo dogmatismo das igrejas e culminando com trabalhos sem beleza, prazer nem criatividade, que têm como fim último o salário para a sobrevivência. Aceitamos tudo que nos é dado com um conformismo crescente e uma alienação protuberante! A globalização e o neoliberalismo são ótimos exemplos contemporâneos de processos internacionais que facilmente convenceram a quase totalidade da raça humana de sua irreversibilidade. Isso mostra o tamanho do problema contemporâneo, que é basicamente, a meu ver, filosófico.
O compositor Yanni tem um pensamento que se encaixa perfeitamente nessa visão encorajadora de uma postura ativa no mundo: “Everything great that has ever happened in humanity since the beginning has begun as a single thought in someone’s mind.” (Frase dita no show “Live At Acropolis”, na Grécia, em 1994.)
Apresentei até aqui a face positiva da história monumental. Mas a mesma também pode ser mal utilizada, trazendo desvantagem para a vida. Para Nietzsche, essas suas faces degeneradas consistiriam em:
1. Induzir ao exagero (“impele os corajosos à temeridade, os entusiasmados ao fanatismo”- ps. 22-23);
2. Servir como desculpa para “egoístas talentosos” a usarem em proveito próprio, para convencer as massas e causar revoluções políticas a seu bel-prazer;
3. Não deixar o grande surgir no presente (“Vede, o grande já está aí!” – p. 24), quando “impotentes” se apoderam dela (“os mortos enterrarem os vivos” – p.24)
Esta terceira face é mais explorada pelo autor, desenvolvendo-se daí uma crítica aos críticos, inclusive de arte. Nietzsche, como Aristóteles em sua Ética, valoriza o homem de ação, o homem feliz, o homem que cria, em relação àquele que:
“fica apenas olhando e não coloca ele mesmo as mãos na massa.” (p. 23)
Esse que olha é o crítico, que tem ódio dos criadores do grande, ódio causado por sua pequenez. E a sua vingança é justamente tentar enterrar esses vivos (realmente vivos) com a grandeza dos mortos (do passado).
Bibliografia:
NIETZSCHE, F. Segunda consideração intempestiva. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2003.
PLATÃO. A República. São Paulo: Martin Claret, 2006.
(Fabio Rocha)
ANÁLISE DO “DOS DESPREZADORES DO CORPO” (Parte do “Assim falou Zaratustra”, de Nietzsche)
Nietzsche já inicia esse belo texto cheio de ironia e vigor: se você despreza seu corpo, acredita que tudo corpóreo é pecado, crê no “platonismo para o povo” que é o cristianismo, que separa o corpo impuro da alma maravilhosa, julga que há um céu divinal a te esperar após esta vida terrena, extremamente suja, material, impura, então você não deve mudar nada, mas apenas começar a praticar o que acredita: pare de usar seu corpo. Ou seja: mate-se. Ou, menos drasticamente, pare de falar e ouça (ou leia).
A criança que jogava dados consigo mesma em Heráclito (“O tempo é uma criança, criando, jogando o jogo de pedras; vigência da criança.” - fragmento 52) aparece no texto dizendo que é corpo e alma, sem separá-los ou distingui-los.
Mas o adulto, “sabedor”, “desperto” (note-se que não é qualquer adulto), afirma que ele é todo corpo. Crê que “a alma é apenas uma palavra para alguma coisa no corpo”. Ou seja, o corpo parece ser maior, mais importante que a alma.
O corpo não é estático nem único, é uma “multiplicidade”, “guerra e paz”, guia e algo a ser guiado, tudo ao mesmo tempo. E é também uma “grande razão”. Note-se aqui que não é o cérebro ou a alma uma “grande razão”, mas o corpo, em sua plenitude. O pensar é do corpo, para Nietzsche, assim como o sentir e os sentidos. Por trás de cada pensamento e sentimento, está o corpo, ou o “ser próprio”. Essa imagem me parece semelhante a teorias de psicanálise, pois podemos achar que sabemos todas as razões para agirmos de tal ou qual forma, e na verdade, nosso inconsciente pode interferir muito no processo. Também podemos pensar nos instintos animais, que podemos seguir nos atos mais triviais, sem que passe por nossa “razão” (por exemplo, o reflexo involuntário de retirar a mão de algo que a queime). Resumindo, há realmente algo maior que a razão e os sentimentos em nós. “Há mais razão no teu corpo do que na tua melhor sabedoria”.
O corpo ri dos devaneios do pensamento, que seriam “rodeios para chegar aos seus fins”. Realmente, quantas vezes não nos enganamos praticando atos “nobres”, ou divagando por teorias filosóficas complicadíssimas, quando na verdade o que queremos é suprir as vontades corpóreas? Ser amado, ser tocado, ter prazer...
O “eu” de que falamos nada mais é do que uma construção do nosso corpo. Nosso “eu” não é estático e definido, mas o que o nosso corpo constrói, cria. Cria, inclusive para além de si, se você não for um desprezador do corpo (que desistiu de criar para além, logo, desistiu de viver, despreza não só o corpo, mas a vida). Por não haver desistido, segue uma tentativa de criação, ou um resumo em verso da aula sobre os desprezadores do corpo:
NIETZSCHEANA NÚMERO 1
Cidade nossa cheia de prédios
por onde passam ambulâncias
e carros de polícia...
Pessoas nascem
envelhecem
e morrem...
Contra isso,
criar
e querer
mastigar
o impossível.
Em cada
movimento
seguir a justa medida:
espada do guerreiro grego cheia de sangue
regendo o bolero de Ravel.
Não precisar
seguir Buda e não querer
seguir Cristo e negar o querer
e desistir do mundo e do corpo.
Ao contrário!
Fazer do corpo
de cada gesto
de cada pensamento
prazer e beleza
criando o que se é.
(Será que poderia
fazer este poema mil vezes
sem me arrepender?)
A dança
de nossa multiplicidade
faz o Eu
tornar-se verdade.
O passo adiante:
o mundo.
(Fabio Rocha)
A criança que jogava dados consigo mesma em Heráclito (“O tempo é uma criança, criando, jogando o jogo de pedras; vigência da criança.” - fragmento 52) aparece no texto dizendo que é corpo e alma, sem separá-los ou distingui-los.
Mas o adulto, “sabedor”, “desperto” (note-se que não é qualquer adulto), afirma que ele é todo corpo. Crê que “a alma é apenas uma palavra para alguma coisa no corpo”. Ou seja, o corpo parece ser maior, mais importante que a alma.
O corpo não é estático nem único, é uma “multiplicidade”, “guerra e paz”, guia e algo a ser guiado, tudo ao mesmo tempo. E é também uma “grande razão”. Note-se aqui que não é o cérebro ou a alma uma “grande razão”, mas o corpo, em sua plenitude. O pensar é do corpo, para Nietzsche, assim como o sentir e os sentidos. Por trás de cada pensamento e sentimento, está o corpo, ou o “ser próprio”. Essa imagem me parece semelhante a teorias de psicanálise, pois podemos achar que sabemos todas as razões para agirmos de tal ou qual forma, e na verdade, nosso inconsciente pode interferir muito no processo. Também podemos pensar nos instintos animais, que podemos seguir nos atos mais triviais, sem que passe por nossa “razão” (por exemplo, o reflexo involuntário de retirar a mão de algo que a queime). Resumindo, há realmente algo maior que a razão e os sentimentos em nós. “Há mais razão no teu corpo do que na tua melhor sabedoria”.
O corpo ri dos devaneios do pensamento, que seriam “rodeios para chegar aos seus fins”. Realmente, quantas vezes não nos enganamos praticando atos “nobres”, ou divagando por teorias filosóficas complicadíssimas, quando na verdade o que queremos é suprir as vontades corpóreas? Ser amado, ser tocado, ter prazer...
O “eu” de que falamos nada mais é do que uma construção do nosso corpo. Nosso “eu” não é estático e definido, mas o que o nosso corpo constrói, cria. Cria, inclusive para além de si, se você não for um desprezador do corpo (que desistiu de criar para além, logo, desistiu de viver, despreza não só o corpo, mas a vida). Por não haver desistido, segue uma tentativa de criação, ou um resumo em verso da aula sobre os desprezadores do corpo:
NIETZSCHEANA NÚMERO 1
Cidade nossa cheia de prédios
por onde passam ambulâncias
e carros de polícia...
Pessoas nascem
envelhecem
e morrem...
Contra isso,
criar
e querer
mastigar
o impossível.
Em cada
movimento
seguir a justa medida:
espada do guerreiro grego cheia de sangue
regendo o bolero de Ravel.
Não precisar
seguir Buda e não querer
seguir Cristo e negar o querer
e desistir do mundo e do corpo.
Ao contrário!
Fazer do corpo
de cada gesto
de cada pensamento
prazer e beleza
criando o que se é.
(Será que poderia
fazer este poema mil vezes
sem me arrepender?)
A dança
de nossa multiplicidade
faz o Eu
tornar-se verdade.
O passo adiante:
o mundo.
(Fabio Rocha)
REVENDO O FILME 2001 - UMA ODISSÉIA NO ESPAÇO, APÓS 2 SEMESTRES DE FILOSOFIA
“Ouvindo não a mim mas ao logos, é sábio concordar ser tudo-um.” - Heráclito de Éfeso (fragmento 60)
Quando vi pela primeira vez 2001, jovem e inexperiente demais, não consegui perceber suas facetas poéticas que permitem várias interpretações (o próprio Arthur C. Clarke fez questão de preservar o enigma do filme nas entrevistas, pelo que pesquisei na internet). Seguem aqui algumas delas, após um breve convívio (dois semestres apenas) com a Filosofia.
O filme começa e termina com a bela obra de Strauss, "Assim falou Zaratustra", como fundo musical. Já o título da música é sugestivo, por ser o mesmo do livro considerado a obra-prima de Nietzsche por ele mesmo. O começar e terminar do mesmo modo nos leva a pensar que início e fim podem ser ilusões, nos levam ao tempo ayón, que os gregos consideravam como um presente eterno sem início nem fim, e não ao tempo cronos, nosso tempo "moderno", determinado pela aparente ordem dos relógios*. Daí podemos tocar a teoria do eterno retorno de Nietzsche, seu pensamento mais profundo (segundo ele mesmo), e ouvir "com outros ouvidos" a bela música de início e fim.
Esse jogo de início=fim, também podemos perceber por o filme se iniciar e acabar com o misterioso monolito (ou megalito ou obelisco negro) entrando em formação perfeita com outros corpos celestes alinhados. Como se o momento perfeito, o momento único, fosse aquele agora, eternamente e perfeitamente se repetindo nele mesmo, já que não há início nem fim sob essa perspectiva.
Nas primeiras cenas, nossos ancestrais cobertos de pelos vêem de longe o monolito, que interpreto como sendo o conhecimento (logos), ou a vontade de conhecer mais, de ser mais, de poder, de potência... A curiosidade que nos move para frente. Depois, temendo sempre, se aproximam... Depois, sempre num avanço lento, o tocam. Tocam sua negra, perfeitamente lisa e geométrica forma (e lembro da importância que os gregos davam para a geometria nas épocas remotas, do nosso alvorecer do pensar). É a partir desse toque no monolito, e só a partir de então, que começam a desenvolver instrumentos com ossos. Daí há um corte magistral e a tecnologia avança até as naves espaciais, como um osso jogado ao céu por mãos humanas. Note-se que a evolução começa a partir do conflito com o semelhante, desde o início...
Outro ponto interessante é a visão do micro no macro, certamente proposital, em várias cenas, como as de quando o astronauta chega a Júpiter e passa por uma viagem insólita, aparentemente até dolorosa, onde brotam cenas mais e mais estranhas até voltar a uma certa paz e chegar ao fim do filme, que descrevo abaixo. Algumas cenas estranhas da viagem: espermatozóide indo pro óvulo ou galáxias se formando? Um feto ou um corpo celeste gigante se formando?
O fim do filme mostra o astronauta envelhecendo rápido, num fluxo de tempo estranho, cortado, vendo a si mesmo mais velho e, assim, se tornando aquilo que via, progressivamente. Quando está bem velho, quase morrendo, se torna um feto, antes de nascer. A música volta a ser o "Assim falou Zaratustra". Fim=Início. E, como no início do filme, o misterioso monolito aparece. E o velho viajante, ainda antes de se tornar feto, aponta para ele, quer tocá-lo, e talvez se veja nele. Se tudo é um, somos parte dele e ele, parte de nós. E viajando ainda mais, será que o velho tenta tocar esse pensamento profundo, como um próximo nível da evolução humana? Do mesmo modo como seus ancestrais quase macacos no início do filme... Como o homem, querendo tocar o impossível.
Em 2001, nossa raça precisou ir a Júpiter, procurando extraterrestres, com a ajuda de uma tecnologia que atrapalha mais que ajuda (o computador HAL, evolução dos ossos das cenas iniciais), para chegar a si mesma, como parte integrante de um todo eterno.
*OBS: As concepções de tempo como ayón e cronos, na verdade, surgiram ambas já na Grécia antiga. O que quis dizer com cronos moderno é que, hoje em dia, basicamente só nas faculdades de Filosofia (e algumas religiões) é que se fala em outras concepções de tempo, diferentes do cronológico. Agradeço ao Rodrigo Sinoti pelo papo e ajuda com esse texto.
(Fabio Rocha)
Links interessantes sobre o filme:
http://blog.uncovering.org/archives/2005/05/os_filmes_da_mi_2.html
http://www.kubrick2001.com/
http://clientes.netvisao.pt/amalmeid/2001_odissey.htm
Quando vi pela primeira vez 2001, jovem e inexperiente demais, não consegui perceber suas facetas poéticas que permitem várias interpretações (o próprio Arthur C. Clarke fez questão de preservar o enigma do filme nas entrevistas, pelo que pesquisei na internet). Seguem aqui algumas delas, após um breve convívio (dois semestres apenas) com a Filosofia.
O filme começa e termina com a bela obra de Strauss, "Assim falou Zaratustra", como fundo musical. Já o título da música é sugestivo, por ser o mesmo do livro considerado a obra-prima de Nietzsche por ele mesmo. O começar e terminar do mesmo modo nos leva a pensar que início e fim podem ser ilusões, nos levam ao tempo ayón, que os gregos consideravam como um presente eterno sem início nem fim, e não ao tempo cronos, nosso tempo "moderno", determinado pela aparente ordem dos relógios*. Daí podemos tocar a teoria do eterno retorno de Nietzsche, seu pensamento mais profundo (segundo ele mesmo), e ouvir "com outros ouvidos" a bela música de início e fim.
Esse jogo de início=fim, também podemos perceber por o filme se iniciar e acabar com o misterioso monolito (ou megalito ou obelisco negro) entrando em formação perfeita com outros corpos celestes alinhados. Como se o momento perfeito, o momento único, fosse aquele agora, eternamente e perfeitamente se repetindo nele mesmo, já que não há início nem fim sob essa perspectiva.
Nas primeiras cenas, nossos ancestrais cobertos de pelos vêem de longe o monolito, que interpreto como sendo o conhecimento (logos), ou a vontade de conhecer mais, de ser mais, de poder, de potência... A curiosidade que nos move para frente. Depois, temendo sempre, se aproximam... Depois, sempre num avanço lento, o tocam. Tocam sua negra, perfeitamente lisa e geométrica forma (e lembro da importância que os gregos davam para a geometria nas épocas remotas, do nosso alvorecer do pensar). É a partir desse toque no monolito, e só a partir de então, que começam a desenvolver instrumentos com ossos. Daí há um corte magistral e a tecnologia avança até as naves espaciais, como um osso jogado ao céu por mãos humanas. Note-se que a evolução começa a partir do conflito com o semelhante, desde o início...
Outro ponto interessante é a visão do micro no macro, certamente proposital, em várias cenas, como as de quando o astronauta chega a Júpiter e passa por uma viagem insólita, aparentemente até dolorosa, onde brotam cenas mais e mais estranhas até voltar a uma certa paz e chegar ao fim do filme, que descrevo abaixo. Algumas cenas estranhas da viagem: espermatozóide indo pro óvulo ou galáxias se formando? Um feto ou um corpo celeste gigante se formando?
O fim do filme mostra o astronauta envelhecendo rápido, num fluxo de tempo estranho, cortado, vendo a si mesmo mais velho e, assim, se tornando aquilo que via, progressivamente. Quando está bem velho, quase morrendo, se torna um feto, antes de nascer. A música volta a ser o "Assim falou Zaratustra". Fim=Início. E, como no início do filme, o misterioso monolito aparece. E o velho viajante, ainda antes de se tornar feto, aponta para ele, quer tocá-lo, e talvez se veja nele. Se tudo é um, somos parte dele e ele, parte de nós. E viajando ainda mais, será que o velho tenta tocar esse pensamento profundo, como um próximo nível da evolução humana? Do mesmo modo como seus ancestrais quase macacos no início do filme... Como o homem, querendo tocar o impossível.
Em 2001, nossa raça precisou ir a Júpiter, procurando extraterrestres, com a ajuda de uma tecnologia que atrapalha mais que ajuda (o computador HAL, evolução dos ossos das cenas iniciais), para chegar a si mesma, como parte integrante de um todo eterno.
*OBS: As concepções de tempo como ayón e cronos, na verdade, surgiram ambas já na Grécia antiga. O que quis dizer com cronos moderno é que, hoje em dia, basicamente só nas faculdades de Filosofia (e algumas religiões) é que se fala em outras concepções de tempo, diferentes do cronológico. Agradeço ao Rodrigo Sinoti pelo papo e ajuda com esse texto.
(Fabio Rocha)
Links interessantes sobre o filme:
http://blog.uncovering.org/archives/2005/05/os_filmes_da_mi_2.html
http://www.kubrick2001.com/
http://clientes.netvisao.pt/amalmeid/2001_odissey.htm
Heráclito, Nietzsche e Jung em confluência
"As almas farejam no invisível."
Heráclito de Éfeso, fragmento XCVIII (Heráclito, Fragmentos Contextualizados - tradução, apresentação e comentários por Alexandre Costa. - Rio de Janeiro: DIFEL, 2002, p. 157)
"A sincronicidade não é mais enigmática nem mais misteriosa do que as descontinuidades da Física. É apenas nossa convicção arraigada do poder absoluto da causalidade que cria as dificuldades ao nosso entendimento e nos faz parecer que não existem e nem podem existir acontecimentos acausais."
Carl Gustav Jung (Sincronicidade, 13a edição, Tradução de Pe. Dom Mateus Ramalho Rocha, Petrópolis: Editora Vozes, 2005, p. 82)
"- Qual é a tarefa de todo ensino mais elevado?
- Tornar o homem uma máquina.
- Qual o meio para tanto?
- Ele precisa aprender a entediar-se."
Friedrich Wilhelm Nietzsche (Crepúsculo dos ídolos ou como filosofar com o martelo, aforismo 29, ebook)
Heráclito de Éfeso, fragmento XCVIII (Heráclito, Fragmentos Contextualizados - tradução, apresentação e comentários por Alexandre Costa. - Rio de Janeiro: DIFEL, 2002, p. 157)
"A sincronicidade não é mais enigmática nem mais misteriosa do que as descontinuidades da Física. É apenas nossa convicção arraigada do poder absoluto da causalidade que cria as dificuldades ao nosso entendimento e nos faz parecer que não existem e nem podem existir acontecimentos acausais."
Carl Gustav Jung (Sincronicidade, 13a edição, Tradução de Pe. Dom Mateus Ramalho Rocha, Petrópolis: Editora Vozes, 2005, p. 82)
"- Qual é a tarefa de todo ensino mais elevado?
- Tornar o homem uma máquina.
- Qual o meio para tanto?
- Ele precisa aprender a entediar-se."
Friedrich Wilhelm Nietzsche (Crepúsculo dos ídolos ou como filosofar com o martelo, aforismo 29, ebook)
O ETERNO RETORNO DE NIETZSCHE E A MÚSICA
Pensei numa metáfora musical para essa bela teoria: as notas musicais (limitadas, não infinitas) produzem quase infinitas combinações de músicas. Porém, se considerarmos o tempo infinito, com certeza algumas músicas se repetirão. Serão idênticas as sequências de notas musicais.
As forças Nietzchianas são como as notas musicais. A disputa das forças, seguindo a vontade de potência, se também considerarmos o tempo como infinito, forçosamente se repetirão. Logo, como tudo são jogos de forças para Nietzsche, tudo está retornando eternamente, já que o tempo não tem começo ou fim.
(Fabio Rocha)
As forças Nietzchianas são como as notas musicais. A disputa das forças, seguindo a vontade de potência, se também considerarmos o tempo como infinito, forçosamente se repetirão. Logo, como tudo são jogos de forças para Nietzsche, tudo está retornando eternamente, já que o tempo não tem começo ou fim.
(Fabio Rocha)
Trabalho sobre O Fenômeno Urbano - A Metrópole e a Vida Mental – texto de Georg Simmel
Trabalho sobre O Fenômeno Urbano - A Metrópole e a Vida Mental – texto de Georg Simmel
1) Retrato psicológico do homem metropolitano típico e sua relação com as condições objetivas da metrópole
Para o autor, o homem que vive nas grandes cidades vive num estado de resistência, para manter sua subjetividade, autonomia e individualidade. O contraponto é do homem mais primitivo, que tinha uma luta pela sobrevivência apenas.
Outro aspecto levantado é que a metrópole criaria um modo de vida com tantos estímulos e com um ritmo de vida tão acelerado que o metropolitano, como defesa, tende a reagir menos emocionalmente e mais com a inteligência (que o autor chama de atitude de reserva) ou a quase não reagir (atitude blasé).
Esse cenário de frieza e distância, quando comparamos com o modo de vida no campo, vem junto com a presença massificante do dinheiro, como medida de todas as coisas. Tudo perde o encanto, a “cor”, o caráter único, para se tornar um preço. Até mesmo os relacionamentos pessoais são afetados por esta lógica monetária.
Um ponto de vista positivo, segundo Simmel, seria a liberdade maior que a vida em metrópole proporciona. Com a maior especialização do trabalho, cada indivíduo gastaria menos tempo tentando manter sua vida e, assim, teria mais liberdade para gastar seu tempo com questões de interesse pessoal.
A auto-estima também parece difícil na grande cidade. E algumas pessoas tentam mantê-la através do reconhecimento e atenção de outras. Para isso, criam um comportamento “extravagante”, tentando ser únicas no universo massificador da metrópole.
2) Princípio sociológico maior presente no texto
Podemos perceber vários princípios sociológicos no quadro de Simmel, mas ele expressa claramente um deles no texto: a idéia de metrópole como ilustração do princípio da união em grupos sociais (partidos políticos, governos etc.). Esses grupos precisam de regras para se manterem. E são essas mesmas regras que diminuem as liberdades individuais. Com o crescimento do grupo, a tendência observada em todos os casos é das regras ficarem menos rígidas, dando uma maior liberdade aos indivíduos que compõem o grupo.
3) O indivíduo e a sociedade
O indivíduo se opõe à sociedade na medida em que luta para manter sua individualidade, para distinguir-se, quando a sociedade e o modo de vida das grandes cidades, seus horários rígidos, seus números desumanos, tendem a massificar seus pensamentos e comportamentos.
Para Simmel, essa oposição ou conflito entre indivíduo e sociedade diminui se mudarmos de perspectiva e observarmos a liberdade e igualdade maiores que a metrópole proporciona quando comparada à vida no campo, ou numa cidade pequena, ou no século XVIII, com regras mais rígidas (políticas, religiosas etc.).
4) A relação entre cultura objetiva e cultura subjetiva
Cultura objetiva seria a cultura ligada a objetos (coisas, conhecimento, instituições). A cultura subjetiva estaria ligada ao indivíduo. Para o autor há uma discrepância grande no ritmo de crescimento das duas culturas. Enquanto a objetiva cresceu vertiginosamente, a subjetiva foi mais lenta e pode ter até regredido em certos pontos (ética, idealismo etc.).
A causa deste fenômeno, seria a divisão do trabalho e sua crescente especialização, que torna os indivíduos cada vez mais alheios ao todo, com sua visão focada apenas ao processo (cada vez menor) que lhe é atribuído, para ganhar seu dinheiro.
Por exemplo, um artesão, na antiguidade, sabia como funcionava cada parte da carroça que construía, em seu ritmo, com sua arte, sua subjetividade. Na época do texto de Simmel (século XIX), um operário de uma fábrica de carros é quase um robô – muito bem representado no filme “Tempos Modernos”, de Chaplin, apertando parafusos, sem espaço nenhum para subjetividade.
Essa discrepância lembra o que Nietszche chamou de crescimento demasiado do Apolíneo em detrimento do Dionisíaco.
(Fabio Rocha)
1) Retrato psicológico do homem metropolitano típico e sua relação com as condições objetivas da metrópole
Para o autor, o homem que vive nas grandes cidades vive num estado de resistência, para manter sua subjetividade, autonomia e individualidade. O contraponto é do homem mais primitivo, que tinha uma luta pela sobrevivência apenas.
Outro aspecto levantado é que a metrópole criaria um modo de vida com tantos estímulos e com um ritmo de vida tão acelerado que o metropolitano, como defesa, tende a reagir menos emocionalmente e mais com a inteligência (que o autor chama de atitude de reserva) ou a quase não reagir (atitude blasé).
Esse cenário de frieza e distância, quando comparamos com o modo de vida no campo, vem junto com a presença massificante do dinheiro, como medida de todas as coisas. Tudo perde o encanto, a “cor”, o caráter único, para se tornar um preço. Até mesmo os relacionamentos pessoais são afetados por esta lógica monetária.
Um ponto de vista positivo, segundo Simmel, seria a liberdade maior que a vida em metrópole proporciona. Com a maior especialização do trabalho, cada indivíduo gastaria menos tempo tentando manter sua vida e, assim, teria mais liberdade para gastar seu tempo com questões de interesse pessoal.
A auto-estima também parece difícil na grande cidade. E algumas pessoas tentam mantê-la através do reconhecimento e atenção de outras. Para isso, criam um comportamento “extravagante”, tentando ser únicas no universo massificador da metrópole.
2) Princípio sociológico maior presente no texto
Podemos perceber vários princípios sociológicos no quadro de Simmel, mas ele expressa claramente um deles no texto: a idéia de metrópole como ilustração do princípio da união em grupos sociais (partidos políticos, governos etc.). Esses grupos precisam de regras para se manterem. E são essas mesmas regras que diminuem as liberdades individuais. Com o crescimento do grupo, a tendência observada em todos os casos é das regras ficarem menos rígidas, dando uma maior liberdade aos indivíduos que compõem o grupo.
3) O indivíduo e a sociedade
O indivíduo se opõe à sociedade na medida em que luta para manter sua individualidade, para distinguir-se, quando a sociedade e o modo de vida das grandes cidades, seus horários rígidos, seus números desumanos, tendem a massificar seus pensamentos e comportamentos.
Para Simmel, essa oposição ou conflito entre indivíduo e sociedade diminui se mudarmos de perspectiva e observarmos a liberdade e igualdade maiores que a metrópole proporciona quando comparada à vida no campo, ou numa cidade pequena, ou no século XVIII, com regras mais rígidas (políticas, religiosas etc.).
4) A relação entre cultura objetiva e cultura subjetiva
Cultura objetiva seria a cultura ligada a objetos (coisas, conhecimento, instituições). A cultura subjetiva estaria ligada ao indivíduo. Para o autor há uma discrepância grande no ritmo de crescimento das duas culturas. Enquanto a objetiva cresceu vertiginosamente, a subjetiva foi mais lenta e pode ter até regredido em certos pontos (ética, idealismo etc.).
A causa deste fenômeno, seria a divisão do trabalho e sua crescente especialização, que torna os indivíduos cada vez mais alheios ao todo, com sua visão focada apenas ao processo (cada vez menor) que lhe é atribuído, para ganhar seu dinheiro.
Por exemplo, um artesão, na antiguidade, sabia como funcionava cada parte da carroça que construía, em seu ritmo, com sua arte, sua subjetividade. Na época do texto de Simmel (século XIX), um operário de uma fábrica de carros é quase um robô – muito bem representado no filme “Tempos Modernos”, de Chaplin, apertando parafusos, sem espaço nenhum para subjetividade.
Essa discrepância lembra o que Nietszche chamou de crescimento demasiado do Apolíneo em detrimento do Dionisíaco.
(Fabio Rocha)
TRABALHO SOBRE NIETZSCHE E A METAFÍSICA
“Eu não o exortaria se recobrar sua liberdade lhe custasse alguma coisa; como o homem pode ter algo mais caro que restabelecer-se em seu direito natural e, por assim dizer, de bicho voltar a ser homem? Mas ainda não desejo nele tamanha audácia, permito-lhe que prefira não sei que segurança de viver miseravelmente a uma duvidosa esperança de viver à sua vontade.” – Etienne La Boétie (Discurso da servidão voluntária)
Não há como não ver nesta passagem o rebanho de Nietzsche, preferindo seguir os sacerdotes a escolher seus próprios passos. Será que após tantos anos, apenas trocamos os tiranos monarcas da época de La Boétie por outros, mais atuais? Para Nietzsche, são eles: a ética, a causalidade, o cristianismo (e suas culpas), o mundo ideal separado do nosso, a busca da essência das coisas, a busca da verdade (como algo fixo), dentre outros. Continuamos seguindo por um caminho indicado (como atores, para Nietzsche), ao invés de construirmos ativamente um caminho único, nosso:
"Ninguém pode construir em teu lugar as pontes que precisarás passar para atravessar o rio da vida - ninguém, exceto tu, só tu. Existem, por certo, atalhos sem números, e pontes, e semideuses que se oferecerão para levar-te além do rio; mas isso te custaria a tua própria pessoa; tu te hipotecarias e te perderias. Existe no mundo um único caminho por onde só tu podes passar. Onde leva? Não perguntes, segue-o.” – trecho atribuído a Nietzsche
É difícil pensar em um filósofo mais libertário e, conseqüentemente, interessante. Crítico também da humildade, o próprio Nietzsche o afirma em “Ecce Homo” que a leitura de seus textos faz com que se perca o interesse em outros filósofos.
É complicado até imaginar uma construção de caminho ao caminhar, e não anterior ao caminhar, mas é isso que Nietzsche diz. Que pensemos junto com o agir: “Enquadrar-se, viver como vive o ´homem comum´, achar correto e bom o que ele acha correto: isso é a submissão ao instinto de rebanho. Há que se levar sua coragem e o seu rigor longe o bastante para sentir como uma vergonha tal submissão. Não viver com duas medidas!... Não separar teoria e práxis!...” (Aforismo 458 do “Vontade de Poder”). O final desta passagem mostra também a importância de viver conforme se fala, de representar o menos possível, de seguir os instintos. “Tudo o que é bom é instintivo.” (Aforismo 2 do “Crepúsculo dos Ídolos” )
Alguns o acusam de ser ilógico ou incoerente. Mas e se ele nem tentou se enquadrar nesses conceitos? Isso tira a validade de seus textos? O que é a validade senão um conjunto de regras pré-determinadas, ou seja, um caminho já percorrido? E, para completar, esse caminho já percorrido tenta chegar à verdade. E essa verdade existe? Penso que se pode afirmar que o autor se encontra além da lógica racional, matemática, cientificista (assim como ele mesmo diz estar além da moral): “Defendo-me contra toda tartufaria de cientificidade:
1 – em relação à exposição, quando ela não corresponde à gênese dos pensamentos
2 – nas reivindicações de métodos, que talvez não sejam absolutamente possíveis durante um determinado tempo da ciência
3 – nas reivindicações de objetividade, de fria ausência de personalidade, nas quais, como em todas as valorações, contamos com duas palavras sobre nós e nossas vivências interiores” (Aforismo 424 do “Vontade de Poder”)
Nietzsche nos faz repensar tudo, até a linguagem. Ele descontrói convincentemente nosso método de linguagem, mostrando que todos os conceitos básicos da comunicação não passam de convenções, assim como o conceito de verdade: “O que é então a verdade? Uma hoste em movimento de metáforas, metonímias, antropomorfismos, em resumo, uma gama de relações humanas que foram realçadas, extrapoladas e adornadas poetica e retoricamente e que, depois de um uso prolongado, um povo considera firmes, canônicas (...)?”. (“Sobre verdade e mentira no sentido extramoral”, cap. 1)
Ainda sobre a verdade, ele nos alerta do perigo de se estagnar sobre ela, perdendo-se a vontade de experimentar, examinar, pesquisar: “é mais confortável obedecer do que examinar... é mais lisonjeiro pensar ‘eu tenho a verdade’ do que ver em torno de si somente escuridão”. (Aforismo 452 do “Vontade de poder”). Na história da Filosofia, podemos perceber esta mesma crítica nos diálogos socráticos e no mito da caverna de Platão (os prisioneiros preguiçosos e muito convencidos de que estavam diante do real quando viam as sombras projetadas na parede, nem tentariam sair da caverna...)
Só uma visão muito afastada do convencional e do individual e, ao contrário, próxima do todo, pode nos fazer repensar tudo o que costumávamos aceitar. E isso é declaradamente o que Nietzsche quer: “um ceticismo absoluto contra todos os conceitos herdados” (Aforismo 409 do “Vontade de Poder”).
Como ele alerta, é preciso coragem para seguir esses preceitos e tornar-se um “espírito livre”. É um caminho mais difícil do que deixar-se no rebanho... E Platão já dizia que “tudo o que é grandioso é perigoso (...) e o que é belo é difícil.” (A República – livro VI – 497) Mas esse seria um grande passo para a construção de um homem realmente saudável. E também de filósofos mais criativos e originais, que se permitam ir além de repetir seus antecessores:
“Quanto a mim, os autores de que gosto, eu os utilizo. O único sinal de reconhecimento que se pode ter com um pensamento como o pensamento de Nietzsche é precisamente utilizá-lo, deformá-lo, fazê-lo ranger, gritar. Que os comentadores digam se é ou não fiel, isto não tem o menor interesse.” (FOUCAULT, M. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1986.).
(Fabio Rocha)
Não há como não ver nesta passagem o rebanho de Nietzsche, preferindo seguir os sacerdotes a escolher seus próprios passos. Será que após tantos anos, apenas trocamos os tiranos monarcas da época de La Boétie por outros, mais atuais? Para Nietzsche, são eles: a ética, a causalidade, o cristianismo (e suas culpas), o mundo ideal separado do nosso, a busca da essência das coisas, a busca da verdade (como algo fixo), dentre outros. Continuamos seguindo por um caminho indicado (como atores, para Nietzsche), ao invés de construirmos ativamente um caminho único, nosso:
"Ninguém pode construir em teu lugar as pontes que precisarás passar para atravessar o rio da vida - ninguém, exceto tu, só tu. Existem, por certo, atalhos sem números, e pontes, e semideuses que se oferecerão para levar-te além do rio; mas isso te custaria a tua própria pessoa; tu te hipotecarias e te perderias. Existe no mundo um único caminho por onde só tu podes passar. Onde leva? Não perguntes, segue-o.” – trecho atribuído a Nietzsche
É difícil pensar em um filósofo mais libertário e, conseqüentemente, interessante. Crítico também da humildade, o próprio Nietzsche o afirma em “Ecce Homo” que a leitura de seus textos faz com que se perca o interesse em outros filósofos.
É complicado até imaginar uma construção de caminho ao caminhar, e não anterior ao caminhar, mas é isso que Nietzsche diz. Que pensemos junto com o agir: “Enquadrar-se, viver como vive o ´homem comum´, achar correto e bom o que ele acha correto: isso é a submissão ao instinto de rebanho. Há que se levar sua coragem e o seu rigor longe o bastante para sentir como uma vergonha tal submissão. Não viver com duas medidas!... Não separar teoria e práxis!...” (Aforismo 458 do “Vontade de Poder”). O final desta passagem mostra também a importância de viver conforme se fala, de representar o menos possível, de seguir os instintos. “Tudo o que é bom é instintivo.” (Aforismo 2 do “Crepúsculo dos Ídolos” )
Alguns o acusam de ser ilógico ou incoerente. Mas e se ele nem tentou se enquadrar nesses conceitos? Isso tira a validade de seus textos? O que é a validade senão um conjunto de regras pré-determinadas, ou seja, um caminho já percorrido? E, para completar, esse caminho já percorrido tenta chegar à verdade. E essa verdade existe? Penso que se pode afirmar que o autor se encontra além da lógica racional, matemática, cientificista (assim como ele mesmo diz estar além da moral): “Defendo-me contra toda tartufaria de cientificidade:
1 – em relação à exposição, quando ela não corresponde à gênese dos pensamentos
2 – nas reivindicações de métodos, que talvez não sejam absolutamente possíveis durante um determinado tempo da ciência
3 – nas reivindicações de objetividade, de fria ausência de personalidade, nas quais, como em todas as valorações, contamos com duas palavras sobre nós e nossas vivências interiores” (Aforismo 424 do “Vontade de Poder”)
Nietzsche nos faz repensar tudo, até a linguagem. Ele descontrói convincentemente nosso método de linguagem, mostrando que todos os conceitos básicos da comunicação não passam de convenções, assim como o conceito de verdade: “O que é então a verdade? Uma hoste em movimento de metáforas, metonímias, antropomorfismos, em resumo, uma gama de relações humanas que foram realçadas, extrapoladas e adornadas poetica e retoricamente e que, depois de um uso prolongado, um povo considera firmes, canônicas (...)?”. (“Sobre verdade e mentira no sentido extramoral”, cap. 1)
Ainda sobre a verdade, ele nos alerta do perigo de se estagnar sobre ela, perdendo-se a vontade de experimentar, examinar, pesquisar: “é mais confortável obedecer do que examinar... é mais lisonjeiro pensar ‘eu tenho a verdade’ do que ver em torno de si somente escuridão”. (Aforismo 452 do “Vontade de poder”). Na história da Filosofia, podemos perceber esta mesma crítica nos diálogos socráticos e no mito da caverna de Platão (os prisioneiros preguiçosos e muito convencidos de que estavam diante do real quando viam as sombras projetadas na parede, nem tentariam sair da caverna...)
Só uma visão muito afastada do convencional e do individual e, ao contrário, próxima do todo, pode nos fazer repensar tudo o que costumávamos aceitar. E isso é declaradamente o que Nietzsche quer: “um ceticismo absoluto contra todos os conceitos herdados” (Aforismo 409 do “Vontade de Poder”).
Como ele alerta, é preciso coragem para seguir esses preceitos e tornar-se um “espírito livre”. É um caminho mais difícil do que deixar-se no rebanho... E Platão já dizia que “tudo o que é grandioso é perigoso (...) e o que é belo é difícil.” (A República – livro VI – 497) Mas esse seria um grande passo para a construção de um homem realmente saudável. E também de filósofos mais criativos e originais, que se permitam ir além de repetir seus antecessores:
“Quanto a mim, os autores de que gosto, eu os utilizo. O único sinal de reconhecimento que se pode ter com um pensamento como o pensamento de Nietzsche é precisamente utilizá-lo, deformá-lo, fazê-lo ranger, gritar. Que os comentadores digam se é ou não fiel, isto não tem o menor interesse.” (FOUCAULT, M. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1986.).
(Fabio Rocha)
TRABALHO SOBRE O TEXTO: DA MORTE E SUA RELAÇÃO COM A INDESTRUTIBILIDADE DO NOSSO SER-EM-SI - Arthur Schopenhauer
TRABALHO SOBRE O TEXTO
DA MORTE E SUA RELAÇÃO COM A INDESTRUTIBILIDADE DO NOSSO SER-EM-SI - Arthur Schopenhauer
(O mundo como vontade e representação, Suplemento ao livro quarto, capítulo XLI)
A Filosofia era considerada por Platão como “preparação para a morte”. Textos anteriores de Parmênides e Heráclito já tratam da questão do nascer e perecer. Há uma infinidade de Filósofos a tratar do tema e até Freud escreveu sobre a pulsão de morte (extremamente importante para a Psicanálise), tratando de como termos a certeza da morte nos influencia inconscientemente muito mais do que costumamos imaginar. A morte é um dos temas centrais de toda a Filosofia.
Schopenhauer fala da diferença entre a cosmogonia budista (e bramanista) e das outras religiões: para os primeiros, o homem é o próprio ser originário, cuja essência não tem nascer nem perecer (semelhante à idéia da physis, já presente nos textos de Parmênides e Heráclito, onde nascer e morrer seriam apenas ilusões para quem não vê o todo). Já para os católicos e os de outras religiões, o homem teria vindo do nada e só passaria a existir com o nascer. A implicação disso é que a idéia de morte é muito mais natural, menos preocupante, para o budista, enquanto os cristãos vivem no absurdo limite entre a aniquilação total antes do nascer e a imortalidade da alma após a morte.
Para Schopenhauer, as essências das coisas (as “coisas-em-si”) seriam inalcançáves pela razão e pelo conhecimento, mas podem ser alcançadas pela intuição. Difere de Kant, para quem essas essências seriam totalmente inalcançáveis. Já para Nietzsche, a essência das coisas (como algo além das coisas a que chegamos pelos sentidos), assim como um “mundo verdadeiro” não existiria.
É pela intuição que Schopenhauer acha possível chegar a essência única de todas as coisas (que percebemos através dos sentidos como suas meras representações – daí o título de seu livro). E essa essência seria a vontade, a força natural, a energia vital, o núcleo e a origem da realidade. Vontade além do conceito de tempo cronológico, por tocar o eterno, sem início ou fim. Além do Chronos e mais próxima do Aión. (“A matéria pura (...) é o reflexo imediato, a visibilidade em geral da coisa-em-si, portanto da vontade”).
Assim, nossas vidas individuais e nosso “eu” seriam ilusões, assim como nosso nascimento e morte, “fenômenos superficiais”. Schopenhauer Nossa consciência (ou alma) seria o resultado da vida orgânica, e não causa. Com isso, acabando-se a vida orgânica, a consciência também se acabaria. Particularmente, acho questionável essa certeza da consciência como resultado, pois com todo o avanço da medicina, até hoje não conseguimos atribuir com certeza um local específico em nosso corpo onde estaria a consciência (do mesmo modo, com a memória).
Mas, para Schopenhauer, as consciências se acabam junto com as vidas individuais e a essência, ou a espécie, é que sempre permanece. Se uma mosca dorme e no dia seguinte volta a zumbir, ou se morre e no dia seguinte outra mosca nascida do seu ovo vem zumbir - é a mesma coisa para o autor. Assim como os dias se acabam e voltam a nascer, as estações do ano sucumbem e florescem, “tudo existe sempre no seu lugar e na sua ocasião.” Podemos perceber aqui o conceito do trágico, também muito utilizado por Nietzsche e uma possível inspiração para o seu “eterno retorno”: “Disso que existimos agora, segue-se, pensando bem, que devemos ser em todos os tempos”.
Do mesmo modo que a água que flui numa cachoeira produz um arco-íris imutável acima dela, a sucessão de vidas individuais criaria uma espécie imutável acima delas. Schopenhauer parece aqui, querer trazer algo de modo mais científico e palpável (espécie) ao conceito de essência imutável e una. Porém, hoje em dia, já sabendo da extinção de várias espécies pelo homem, ou imaginando o fim da própria raça humana quando o planeta se acabar, parece ruim o conceito de espécie como exemplo de infinitude.
O temor da morte, Schopenhauer coloca em paralelo com a “vontade de vida”, ambos existentes em homens e animais. Esse medo de morrer e apego a vida em qualquer caso, seria inclusive insensato, como Sócrates já demonstrara na Apologia de Platão (se antes da vida havia o não ser, e se voltássemos a isso após ela, qual seria o problema?). Mas a vontade de vida seria “cega e desprovida de conhecimento”, instintiva como nos animais desprovidos de raciocínio. É interessante notar aqui que Schopenhauer nos aproxima dos animais pelo instinto, enquanto outros filósofos tendem a nos afastar dos animais pela razão.
Para Schopenhauer, o egoísmo do homem o faz limitar toda a realidade à própria pessoa. E a morte seria o desvelar desses véus de ilusão (os véus de Ísis), mostrando que o homem é parte do todo, e o todo é também o homem. Isso eliminaria a diferença entre externo e interno (o que Freud muito mais tarde diria que acontece com todas as crianças, que ao crescerem vão mudando de percepção e passam a se sentir individuais, separadas do mundo que as cerca). O homem que consegue manter esta percepção de parte do todo, para Schopenhauer, pode transformar seu egoísmo em altruísmo (compaixão) e estará muito mais bem preparado para a morte.
AMOR E MORTE
Dissolver-se aos elementos
virar árvore, carbono, pensamento
multiplicar-se em nada e paz
morrer...
Dissolver-se no outro
tornar-se mais por ser menos
derramar-se infinitamente em infinitos copos
metade cheios
amar...
A morte ama o amor:
o amor mata a morte.
(Fabio Rocha) - 08/05/05
DA MORTE E SUA RELAÇÃO COM A INDESTRUTIBILIDADE DO NOSSO SER-EM-SI - Arthur Schopenhauer
(O mundo como vontade e representação, Suplemento ao livro quarto, capítulo XLI)
A Filosofia era considerada por Platão como “preparação para a morte”. Textos anteriores de Parmênides e Heráclito já tratam da questão do nascer e perecer. Há uma infinidade de Filósofos a tratar do tema e até Freud escreveu sobre a pulsão de morte (extremamente importante para a Psicanálise), tratando de como termos a certeza da morte nos influencia inconscientemente muito mais do que costumamos imaginar. A morte é um dos temas centrais de toda a Filosofia.
Schopenhauer fala da diferença entre a cosmogonia budista (e bramanista) e das outras religiões: para os primeiros, o homem é o próprio ser originário, cuja essência não tem nascer nem perecer (semelhante à idéia da physis, já presente nos textos de Parmênides e Heráclito, onde nascer e morrer seriam apenas ilusões para quem não vê o todo). Já para os católicos e os de outras religiões, o homem teria vindo do nada e só passaria a existir com o nascer. A implicação disso é que a idéia de morte é muito mais natural, menos preocupante, para o budista, enquanto os cristãos vivem no absurdo limite entre a aniquilação total antes do nascer e a imortalidade da alma após a morte.
Para Schopenhauer, as essências das coisas (as “coisas-em-si”) seriam inalcançáves pela razão e pelo conhecimento, mas podem ser alcançadas pela intuição. Difere de Kant, para quem essas essências seriam totalmente inalcançáveis. Já para Nietzsche, a essência das coisas (como algo além das coisas a que chegamos pelos sentidos), assim como um “mundo verdadeiro” não existiria.
É pela intuição que Schopenhauer acha possível chegar a essência única de todas as coisas (que percebemos através dos sentidos como suas meras representações – daí o título de seu livro). E essa essência seria a vontade, a força natural, a energia vital, o núcleo e a origem da realidade. Vontade além do conceito de tempo cronológico, por tocar o eterno, sem início ou fim. Além do Chronos e mais próxima do Aión. (“A matéria pura (...) é o reflexo imediato, a visibilidade em geral da coisa-em-si, portanto da vontade”).
Assim, nossas vidas individuais e nosso “eu” seriam ilusões, assim como nosso nascimento e morte, “fenômenos superficiais”. Schopenhauer Nossa consciência (ou alma) seria o resultado da vida orgânica, e não causa. Com isso, acabando-se a vida orgânica, a consciência também se acabaria. Particularmente, acho questionável essa certeza da consciência como resultado, pois com todo o avanço da medicina, até hoje não conseguimos atribuir com certeza um local específico em nosso corpo onde estaria a consciência (do mesmo modo, com a memória).
Mas, para Schopenhauer, as consciências se acabam junto com as vidas individuais e a essência, ou a espécie, é que sempre permanece. Se uma mosca dorme e no dia seguinte volta a zumbir, ou se morre e no dia seguinte outra mosca nascida do seu ovo vem zumbir - é a mesma coisa para o autor. Assim como os dias se acabam e voltam a nascer, as estações do ano sucumbem e florescem, “tudo existe sempre no seu lugar e na sua ocasião.” Podemos perceber aqui o conceito do trágico, também muito utilizado por Nietzsche e uma possível inspiração para o seu “eterno retorno”: “Disso que existimos agora, segue-se, pensando bem, que devemos ser em todos os tempos”.
Do mesmo modo que a água que flui numa cachoeira produz um arco-íris imutável acima dela, a sucessão de vidas individuais criaria uma espécie imutável acima delas. Schopenhauer parece aqui, querer trazer algo de modo mais científico e palpável (espécie) ao conceito de essência imutável e una. Porém, hoje em dia, já sabendo da extinção de várias espécies pelo homem, ou imaginando o fim da própria raça humana quando o planeta se acabar, parece ruim o conceito de espécie como exemplo de infinitude.
O temor da morte, Schopenhauer coloca em paralelo com a “vontade de vida”, ambos existentes em homens e animais. Esse medo de morrer e apego a vida em qualquer caso, seria inclusive insensato, como Sócrates já demonstrara na Apologia de Platão (se antes da vida havia o não ser, e se voltássemos a isso após ela, qual seria o problema?). Mas a vontade de vida seria “cega e desprovida de conhecimento”, instintiva como nos animais desprovidos de raciocínio. É interessante notar aqui que Schopenhauer nos aproxima dos animais pelo instinto, enquanto outros filósofos tendem a nos afastar dos animais pela razão.
Para Schopenhauer, o egoísmo do homem o faz limitar toda a realidade à própria pessoa. E a morte seria o desvelar desses véus de ilusão (os véus de Ísis), mostrando que o homem é parte do todo, e o todo é também o homem. Isso eliminaria a diferença entre externo e interno (o que Freud muito mais tarde diria que acontece com todas as crianças, que ao crescerem vão mudando de percepção e passam a se sentir individuais, separadas do mundo que as cerca). O homem que consegue manter esta percepção de parte do todo, para Schopenhauer, pode transformar seu egoísmo em altruísmo (compaixão) e estará muito mais bem preparado para a morte.
AMOR E MORTE
Dissolver-se aos elementos
virar árvore, carbono, pensamento
multiplicar-se em nada e paz
morrer...
Dissolver-se no outro
tornar-se mais por ser menos
derramar-se infinitamente em infinitos copos
metade cheios
amar...
A morte ama o amor:
o amor mata a morte.
(Fabio Rocha) - 08/05/05
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