O Tempo em Santo Agostinho

Agostinho, em Confissões, trata do tema do tempo no livro 11. No capítulo 6, já desenvolve a questão do início. Se Deus criou a tudo, então Deus (e o verbo de Deus) seria anterior ao tempo: “Se foi, portanto, por meio de palavras soantes e transitórias que dissestes que fossem feitos o céu e a terra, e se assim os criastes, conclui-se que já antes do céu e da terra existia uma criatura material por cujas vibrações aquela voz pôde correr no tempo.”(1) Posteriormente, ele desenvolve mais a questão do verbo de Deus, que seria coeterno com Deus: “[...] é pronunciado por toda a eternidade e no qual tudo é pronunciado eternamente. Nunca se acaba o que estava sendo pronunciado nem se diz outra coisa para dar lugar a que tudo se possa dizer, mas tudo se diz simultânea e eternamente. Se assim não fosse, já haveria tempo e mudança e não verdadeira eternidade e verdadeira imortalidade.”(2) Assim, Agostinho coloca o verbo de Deus fora da esfera do tempo cronológico, além da sucessão de instantes mensuráveis que modernamente entendemos como tempo, na dimensão da eternidade. Cabe aqui lembrar que, na Grécia Antiga, havia três conceitos de tempo: o Chronos, que é o tempo cronológico como entendido na contemporaneidade, o Kairós, que seria o momento oportuno, o instante preciso para se agir (ou deixar de agir), e o Aion, que seria uma dimensão semelhante à descrita, um tempo sem início nem fim, que Heráclito de Éfeso descreveu como uma criança que joga dados consigo mesma em seu reinado lúdico. No capítulo 11, Agostinho destaca que nós, por vivermos na dimensão do tempo (cronológico) não podemos tentar medir a eternidade (imóvel, onde inexiste passado e futuro e tudo é presente). No capítulo 14, Agostinho separa mais claramente o conceito de Deus do de tempo: “Nenhum tempo Vos é coeterno porque Vós permaneceis imutável [...]” (3)

No capítulo 15, divide o tempo em três: presente, passado e futuro. Mas questiona a validade de usarmos a expressão “tempo longo” ou “tempo breve” quando nos referimos a passado (já não existe desde que passou) ou futuro (ainda não existe), ou mesmo para o tempo presente (que se reduz sempre ao instante): “Uma hora compõe-se de fugitivos instantes. Tudo o que dela debandou é passado. Tudo o que ainda resta é futuro. Se pudermos conceber um espaço de tempo que não seja susceptível de ser subdividido em tais partes, por mais pequeninas que sejam, só a este podemos chamar tempo presente.” (4)

No capítulo 16, vem a constatação de que, apesar dessa teoria, efetivamente podemos medir o tempo, comparando seus intervalos entre si, e dizemos que uns são mais longos (milênios, por exemplo) e outros mais breves (milésimos de segundo, por exemplo). Porém sendo impossível chegar a uma medida absoluta, da mesma forma que não podemos pensar matematicamente no maior número existente.

No capítulo 20, Agostinho diz que parece-lhe incorreto haver tempos futuros ou pretéritos, sendo imprópria a terminologia da divisão do tempo em três como explicitado anteriormente. O correto seria: “ [...] os tempos são três: presente das coisas passadas, presente das presentes, presentes das futuras.” O futuro, para ele, não pode ser previsto por não possuir existência. E o passado já acabou.

No capítulo 21, reapresenta a dificuldade: como se pode medir o tempo, se passado e futuro não existem, e se o instante ínfimo não é mensurável? Posteriormente ele refuta a tese de o tempo ser o movimento “do sol da lua e dos astros”. Seria o mesmo que supor que uma roda que girasse constantemente e parasse de girar, pararia o tempo. Hoje, com o avanço da Ciência, sabemos que se a terra parasse de girar, isso não afetaria o fluir tempo. Apenas altíssimas velocidades alteram a percepção do tempo, segundo a teoria da relatividade.

Nota-se, então, que o problema fica em aberto, como toda boa questão filosófica, mas o simples fato de se entender o problema já abre nossa percepção para algo que poderia ser visto inicialmente, superficialmente, como banal. Como o tempo mensurável, com a precisão e imediatidade dos relógios...


Referências:
1- Cf. livro XI, p. 272
2- Cf. livro XI, p. 273
3- Cf. livro XI, p. 278
4- Cf. livro XI, p. 280



Bibliografia:

AGOSTINHO, S. Confissões. 18a. Edição. Rio de Janeiro: Vozes, 2002.


(Fabio Rocha) 2009

Ceticismo

Através da História, a liberdade do pensamento foi o que propiciou o surgimento e posterior desenvolvimento do Ceticismo. Isto porque em sociedades pluralistas e com diferentes culturas e formas de pensar distintas convivendo, naturalmente surge o pensamento mais questionador. Ao se deparar com tantas “verdades” distintas, naturalmente se questiona: “Qual é a mais certa?” Ou “Existe uma verdade única?” Os céticos tendem a rejeitar sociedades ou instituições onde uma única forma de pensar é imposta a todos dogmaticamente, sem espaço para a reflexão crítica.

Sua origem remonta a Pirro, contemporâneo de Aristóteles, que viveu no século IV a. C. Desde então, o que se chamou de ceticismo variou muito ao longo da história.

O ceticismo é uma forma particular de filosofia, pois não tem como base um conjunto de teses sobre algo. Nem pretende ser um conhecimento. A grande característica do cético é manter uma “atitude crítica diante da pretensão dogmática de ter descoberto a verdade.” (1) Por isso o ceticismo nunca deixa de ser atual.

A filosofia se caracteriza por ser uma investigação racional, com o objetivo de estabelecer a verdade de algumas teses e a falsidade de outras através de argumentos racionais e imparciais. Porém, os filósofos ditos “dogmáticos” não cumprem tal característica, já que tendem a não reconhecer qualquer argumento contra as suas teses. E mais: “De maneira precipitada e parcial, aceitaram teses questionáveis.” (2)

A exigência filosófica de argumentos rigorosos e imparciais é veementemente cumprida pelos céticos, que a elevam a um outro nível. Ao examinarem cuidadosamente todos os argumentos envolvidos em um problema, a favor ou contra qualquer tese, se tornaram excelentes argumentadores. “Uma investigação madura costuma mostrar-lhes que a qualquer tese filosófica se pode opor uma outra tese filosófica, de igual força persuasiva e contrária à primeira, de modo que não haveria como aceitar nenhuma das duas.”(3) Aí está a suspensão do juízo, característica do ceticismo.

Os céticos não nos trazem um pretenso conhecimento verdadeiro sobre as coisas, mas um discurso e um método complexo que nos faz questionar o que achamos saber. Organizaram várias formas de argumentação contra qualquer dogmatismo e mostrar que não se chegou ainda à verdade. Assim, mostram que não há nenhuma garantia de que conhecemos o que pensamos ou alegamos conhecer. Segundo eles: “Não sabemos nada, não temos certeza de nada e podemos colocar tudo em dúvida; sequer sabemos que nada sabemos” (4). Assim, nem Sócrates, ao afirmar que nada sabia pode ser considerado um cético, pois saber que nada sabe já é saber algo.

Graças a seu caráter crítico poderoso, e com uma metodologia coerente, o desafio cético mantêm-se até mesmo hoje como um obstáculo inevitável para qualquer tipo de filosofia que pretenda assegurar a verdade de suas teses. Ao mesmo tempo, refutar o ceticismo e suas teorias acabou por se tornar uma obsessão para os filósofos dogmáticos, “sobretudo daqueles que se interessam pela teoria do conhecimento, já que a possibilidade do conhecimento e a descoberta da verdade é um assunto essencial para todos os céticos.” (5)

Pode se dizer que uma pessoa sabe algo quando cumpre três condições:
1 – ela crê no que diz (ou pensa);
2 – sua crença tem que ser verdadeira;
3 – ela precisa justificar de modo adequado sua crença.
Assim, o conhecimento é definido como uma crença verdadeira justificada. O cético questiona as condições 2 e 3, ao perguntar se nossas crenças não poderiam ser falsas, mesmo que pensássemos o oposto. Além disso, mesmo se fossem verdadeiras, não poderiam ser justificadas.

O ceticismo nos faz examinar melhor como conhecemos (ou pensamos conhecer) a realidade. A percepção sensível é a base de como apreendemos o mundo, através dos cinco sentidos. Mas há uma grande diferença entre a causa do processo (um objeto exterior a nós) e o efeito produzido em nós (uma percepção). Este processo está sujeito a excessivas variações e deformações entre o que o objeto é e como o sentimos. Por exemplo, pelos sentidos, podemos achar que o sol tem o diâmetro de uma bola de basquete... Assim, o efeito final do processo pode ser muito diferente da causa inicial (o objeto em si). “Os sentidos têm um valor prático inestimável, mas nenhum valor cognitivo.” (6)

Outro argumento utilizado pelos céticos tem como base a variação das sensações. Como nossas sensações mudam e o objeto permanece o mesmo, nem todas podem ser verdadeiras. Podemos pensar que uma mesa branca é azul, por estar com uma luz azul sobre ela, por exemplo.

Outra hipótese cética é desenvolvida no filme Matrix, onde podemos pensar, pelas sensações, estar vivendo, enquanto, na verdade, estamos apenas presos numa espécie de casulo, com computadores ligados ao nosso cérebro nos transmitindo falsas sensações. Outra hipótese é a do sonho: após um sonho muito realista, não distinguimos bem se estamos acordados ou dormindo. E, durante ele, tudo parece real. Todas essas hipóteses servem para nos mostrar que talvez não saibamos o que pensamos saber, e que o mundo pode ser bem diferente do que nos parece.

Acho válido destacar que o ceticismo não é um ataque ao conhecimento e às crenças comuns da maioria das pessoas. Para os céticos, são os filósofos dogmáticos que atacam primeiramente nosso saber comum e nossas crenças banais. “Os dogmáticos recusam que sabemos o que cremos saber, porque eles tem em mente uma concepção muito forte de conhecimento e porque eles exigem uma justificação que garanta a verdade das crenças. [...] Os céticos antigos, em sua polêmica com os dogmáticos, apenas exploraram a concepção de realidade e conhecimento, fazendo essa voltar-se contra os próprios dogmáticos.” Assim, o ceticismo é uma defesa da vida cotidiana, ao preservá-la dos ataques dos dogmáticos.

Referências:
1- SMITH, Plínio Junqueira. Ceticismo. p. 8
2- SMITH, Plínio Junqueira. Ceticismo. p. 8
3- SMITH, Plínio Junqueira. Ceticismo. p. 8
4- SMITH, Plínio Junqueira. Ceticismo. p. 9
5- SMITH, Plínio Junqueira. Ceticismo. p. 9
6- SMITH, Plínio Junqueira. Ceticismo. p. 13



Bibliografia:

SMITH, Plínio Junqueira. Ceticismo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004.


(Fabio Rocha) 2009

O masculino e o feminino como forças da natureza

O masculino e o feminino como forças da natureza - Fabio Rocha

Hoje, quando falamos em tragédia ou acontecimento trágico, não usamos o sentido filosófico do trágico, que Nietzsche percebeu na tragédia grega. Para ele, a tragédia era a forma de arte mais elevada, pois nela o sentido do termo "trágico" era uma afirmação da realidade, fosse ela qual fosse. Em seu primeiro livro, de 1872, "O nascimento da tragédia", Nietzsche explica a tragédia grega surgindo da união de dois instintos artísticos opostos que se manifestam na própria natureza (e não apenas nos homens): o apolíneo e o dionisíaco. Apolo é o deus da ordem, da precisão, da razão, da luz, da medida, da forma e da ordem. Dioniso é seu oposto e rival: ligado ao dilaceramento, à imprecisão, à escuridão, ao mistério, ao sonho, à embriaguez, ao êxtase, à perda de limites, à dissolução do individual e comunhão com a natureza. As festas para este deus eram onde se perdia totalmente os limites, num terror dionisíaco (para os romanos o deus tinha ouro nome: Baco - daí surgindo o termo "bacanal" para estas celebrações). A tragédia, na teoria desenvolvida por Nietzsche, era a arte mais elevada pois conseguia mostrar o dionisíaco em harmonia com o apolíneo. Não mais uma festa caótica de embriaguez, nem o que viria a se tornar o teatro - sem música nem participação do público no espetáculo. Mas o que quero destacar nesse trabalho é que essas forças opostas e complementares, para Nietzsche, estão em tudo, pois surgem da própria natureza. E de sua eterna batalha nasce a harmonia, como já falava Heráclito, filósofo pré-Socrático, há mais de cinco mil anos trás: "o contrário em tensão é convergente; da divergência dos contrários, a mais bela harmonia." (fragmento 8) Aqui podemos explorar melhor o tema do semestre. Sendo forças gerais, de toda a natureza, será que podemos pensar também o apolíneo como masculino e o dionisíaco como feminino? Não há consenso na filosofia sobre isso. Aceitando tal hipótese, e indo mais além: será que estes impulsos dividem-se ao formar homens e mulheres ou misturam-se em cada homem e em cada mulher? A história mais recente das relações humanas parece ter mostrado uma mudança no papel do homem e da mulher em que cada vez mais o indivíduo parece poder mostrar socialmente que traz em si as duas forças e reprimir cada vez menos uma delas). O homem-machão-provedor-insensível-do-mundo e mulher-emotiva-passiva-de-casa parecem cada vez menos reais. Será que está nascendo em cada indivíduo a bela harmonia de que Heráclito falava? Jung achava que sim. E, resumidamente, nisso consistia a sua teoria da individuação: que cada indivíduo, ao longo de sua vida, tenderia a equilibrar seu masculino e seu feminino, assim como qualquer força oposta desequilibrada. Ele ia além e falava que a própria sociedade também tenderia a esse equilíbrio. E é o que parece realmente estar acontecendo. Ele falava de um ponto chave na vida do indivíduo: os 50 anos. Se alguém levasse uma vida com muita tendência para um dos lados, após esta idade, tenderia a ir para o outro, para compensar. A carreira do ator e diretor Clint Eastwood parece confirmar essa teoria. Até os 50, fez filmes extremamente "masculinos", de faroeste, violência, ação. E, ao passar este marco, fez e dirigiu filmes muito mais sensíveis, iniciando com o belo "As pontes de Madison" (The Bridges of Madison County, 1995). Fabio Rocha (trabalho publicado em http://spag-rj.blogspot.com )