“Eu não o exortaria se recobrar sua liberdade lhe custasse alguma coisa; como o homem pode ter algo mais caro que restabelecer-se em seu direito natural e, por assim dizer, de bicho voltar a ser homem? Mas ainda não desejo nele tamanha audácia, permito-lhe que prefira não sei que segurança de viver miseravelmente a uma duvidosa esperança de viver à sua vontade.” – Etienne La Boétie (Discurso da servidão voluntária)
Não há como não ver nesta passagem o rebanho de Nietzsche, preferindo seguir os sacerdotes a escolher seus próprios passos. Será que após tantos anos, apenas trocamos os tiranos monarcas da época de La Boétie por outros, mais atuais? Para Nietzsche, são eles: a ética, a causalidade, o cristianismo (e suas culpas), o mundo ideal separado do nosso, a busca da essência das coisas, a busca da verdade (como algo fixo), dentre outros. Continuamos seguindo por um caminho indicado (como atores, para Nietzsche), ao invés de construirmos ativamente um caminho único, nosso:
"Ninguém pode construir em teu lugar as pontes que precisarás passar para atravessar o rio da vida - ninguém, exceto tu, só tu. Existem, por certo, atalhos sem números, e pontes, e semideuses que se oferecerão para levar-te além do rio; mas isso te custaria a tua própria pessoa; tu te hipotecarias e te perderias. Existe no mundo um único caminho por onde só tu podes passar. Onde leva? Não perguntes, segue-o.” – trecho atribuído a Nietzsche
É difícil pensar em um filósofo mais libertário e, conseqüentemente, interessante. Crítico também da humildade, o próprio Nietzsche o afirma em “Ecce Homo” que a leitura de seus textos faz com que se perca o interesse em outros filósofos.
É complicado até imaginar uma construção de caminho ao caminhar, e não anterior ao caminhar, mas é isso que Nietzsche diz. Que pensemos junto com o agir: “Enquadrar-se, viver como vive o ´homem comum´, achar correto e bom o que ele acha correto: isso é a submissão ao instinto de rebanho. Há que se levar sua coragem e o seu rigor longe o bastante para sentir como uma vergonha tal submissão. Não viver com duas medidas!... Não separar teoria e práxis!...” (Aforismo 458 do “Vontade de Poder”). O final desta passagem mostra também a importância de viver conforme se fala, de representar o menos possível, de seguir os instintos. “Tudo o que é bom é instintivo.” (Aforismo 2 do “Crepúsculo dos Ídolos” )
Alguns o acusam de ser ilógico ou incoerente. Mas e se ele nem tentou se enquadrar nesses conceitos? Isso tira a validade de seus textos? O que é a validade senão um conjunto de regras pré-determinadas, ou seja, um caminho já percorrido? E, para completar, esse caminho já percorrido tenta chegar à verdade. E essa verdade existe? Penso que se pode afirmar que o autor se encontra além da lógica racional, matemática, cientificista (assim como ele mesmo diz estar além da moral): “Defendo-me contra toda tartufaria de cientificidade:
1 – em relação à exposição, quando ela não corresponde à gênese dos pensamentos
2 – nas reivindicações de métodos, que talvez não sejam absolutamente possíveis durante um determinado tempo da ciência
3 – nas reivindicações de objetividade, de fria ausência de personalidade, nas quais, como em todas as valorações, contamos com duas palavras sobre nós e nossas vivências interiores” (Aforismo 424 do “Vontade de Poder”)
Nietzsche nos faz repensar tudo, até a linguagem. Ele descontrói convincentemente nosso método de linguagem, mostrando que todos os conceitos básicos da comunicação não passam de convenções, assim como o conceito de verdade: “O que é então a verdade? Uma hoste em movimento de metáforas, metonímias, antropomorfismos, em resumo, uma gama de relações humanas que foram realçadas, extrapoladas e adornadas poetica e retoricamente e que, depois de um uso prolongado, um povo considera firmes, canônicas (...)?”. (“Sobre verdade e mentira no sentido extramoral”, cap. 1)
Ainda sobre a verdade, ele nos alerta do perigo de se estagnar sobre ela, perdendo-se a vontade de experimentar, examinar, pesquisar: “é mais confortável obedecer do que examinar... é mais lisonjeiro pensar ‘eu tenho a verdade’ do que ver em torno de si somente escuridão”. (Aforismo 452 do “Vontade de poder”). Na história da Filosofia, podemos perceber esta mesma crítica nos diálogos socráticos e no mito da caverna de Platão (os prisioneiros preguiçosos e muito convencidos de que estavam diante do real quando viam as sombras projetadas na parede, nem tentariam sair da caverna...)
Só uma visão muito afastada do convencional e do individual e, ao contrário, próxima do todo, pode nos fazer repensar tudo o que costumávamos aceitar. E isso é declaradamente o que Nietzsche quer: “um ceticismo absoluto contra todos os conceitos herdados” (Aforismo 409 do “Vontade de Poder”).
Como ele alerta, é preciso coragem para seguir esses preceitos e tornar-se um “espírito livre”. É um caminho mais difícil do que deixar-se no rebanho... E Platão já dizia que “tudo o que é grandioso é perigoso (...) e o que é belo é difícil.” (A República – livro VI – 497) Mas esse seria um grande passo para a construção de um homem realmente saudável. E também de filósofos mais criativos e originais, que se permitam ir além de repetir seus antecessores:
“Quanto a mim, os autores de que gosto, eu os utilizo. O único sinal de reconhecimento que se pode ter com um pensamento como o pensamento de Nietzsche é precisamente utilizá-lo, deformá-lo, fazê-lo ranger, gritar. Que os comentadores digam se é ou não fiel, isto não tem o menor interesse.” (FOUCAULT, M. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1986.).
(Fabio Rocha)
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