AFINAL, O QUE É ARTE?
FABIO JOSÉ ALFREDO SANTOS DA ROCHA
RIO DE JANEIRO
Maio/2008
Weitz [1] parte da teoria de Wittgenstein de que a lógica dos conceitos empíricos não permitiria uma definição dos mesmos, devido à inovação ser algo inerente a eles, aplicando-os na arte. Assim, basicamente, definir, de modo fixo, o que é arte seria algo impossível, sendo ela mutável. Mas Arthur C. Danto (filósofo e crítico de arte), não se contenta com essa adaptação e insiste em trabalhar melhor na investigação de uma definição da arte. Esse estudo é que acompanharemos aqui.
Com o surgimento da fotografia no século XIX, a arte como imitação da natureza começa a perder o sentido. É nesta época que surge o impressionismo, na França, que teve como alguns expoentes Monet, Renoir e Manet.
“Os autores impressionistas não mais se preocupavam com os preceitos do Realismo ou da academia. A busca pelos elementos fundamentais de cada arte levou os pintores impressionistas a pesquisar a produção pictórica não mais interessados em temáticas nobres ou no retrato fiel da realidade, mas em ver o quadro como obra em si mesma. A luz e o movimento utilizando pinceladas soltas tornam-se o principal elemento da pintura, sendo que geralmente as telas eram pintadas ao ar livre para que o pintor pudesse capturar melhor as nuances da natureza. [...] Essa orientação viria dar mais tarde origem ao pontilhismo. As cores e tonalidades não devem ser obtidas pela mistura das tintas na paleta do pintor. Pelo contrário, devem ser puras e dissociadas no quadro em pequenas pinceladas. É o observador que, ao admirar a pintura, combina as várias cores, obtendo o resultado final. A mistura deixa, portanto, de ser técnica para se tornar óptica.” [2].
Assim, a pintura acaba sendo decomposta e deixa e ter como alto critério de valor a sua semelhança com a realidade, como era desde a Grécia antiga até o Romantismo.
A arte como espelho da realidade, aliás, é um tema trabalhado por Danto no primeiro capítulo do “A transfiguração do lugar-comum”, ao comparar os pensamentos contrários de Platão e Shakespeare sobre arte como imitação do real. Para Platão, o espelho da arte, seu caráter mimético, estaria no nível mais baixo da escala ontológica:
1º lugar - coisas em-si;
2º lugar - objetos percebidos pelos sentidos;
3º lugar - objetos de arte como pura imitação de (2).
Para Danto, Platão parece se incomodar com a utilidade de uma arte preocupada somente com uma melhor imitação da realidade já na Grécia de seu tempo: “Sócrates talvez estivesse sugerindo que a mimese perfeita era afinal o grande objetivo dos artistas [...] então, se era só isso que se almejava – fazer uma cópia exata –, seria bem mais fácil obtê-la não pelos métodos usuais de educação artística, mas pelo simples estratagema de colocar um espelho voltado pra o mundo [...]” [3] Ou seja, se o que se busca na arte é uma imitação cada vez mais exata do real, por que não usar logo um espelho voltado para o mundo ao invés de criar um objeto de arte?
Trazendo a discussão para a realidade atual, podemos nos questionar sobre as formas de arte padronizadas como as novelas (se é que podemos chamá-las de arte), muito preocupadas com a identificação com o público e seus índices de audiência, o que acarreta uma produção com cada vez menos inovações e riscos e cada vez mais lugares-comuns, simplificações e estereótipos. Será que podemos dizer que isso causa um efeito de “educação” do público contra mudanças e outras perspectivas de se enxergar a realidade em suas próprias vidas? Talvez sim, já que o processo de espelhamento parece mútuo nesse caso: a cultura do espectador se forma (também) com o que ele vê na novela e as novelas são feitas cada vez mais preocupadas com o número de espectadores que as vêem (em algumas, se chega a mudar a história se os espectadores não estiverem gostando...). Um ciclo infinito de estagnação não criativa, onde a preocupação extremada com a audiência (e o lucro econômico das emissoras de TV) acaba por manter a própria realidade dentro dos mesmos padrões. O cinema estadunidense, com seus recordes de bilheteria, com foco demasiadamente voltado para a ação, uma trama básica, algum romance socialmente aceito e um "Happy End" para encerrar, talvez esteja no mesmo caso. Nietzsche, já no seu primeiro livro, "O Nascimento da Tragédia", diz: "De onde viria ao artista a obrigação de acomodar-se a um poder cuja força reside apenas no número?" (aforismo 11). E esse efeito também pode ser pensado no jornalismo atual e no poder de sua influência na manutenção dos nossos padrões de comportamento, mas aí já estaríamos totalmente fora da questão do que é arte...
Voltando ao tema deste trabalho, a parte positiva da arte como espelho parece ter escapado a Platão: qual instrumento é melhor para percebermos a nós mesmos? Shakespeare, em seu Hamlet, é utilizado por Danto como o pólo oposto dessa visão negativa de Platão. A identificação com uma obra de arte pode trazer autoconhecimento. Quantos poemas, por exemplo, nos surpreendem por conseguir colocar em palavras um pensamento, sentimento ou sensação que sempre tivemos, mas não conseguimos entender ou expressar tão bem como em seus versos? Quando ocorre esse fenômeno estético (que diz respeito não à obra de arte, mas à sensibilidade da pessoa frente à obra) de identificação, não passamos a nos conhecer melhor? Além desse aspecto, o espelho pode nos fazer ver a nós mesmos também como objetos do mundo, abre a possibilidade de sermos percebidos, e não apenas de perceber. Assim é que o rei assassino (Cláudio) se vê na peça montada por Hamlet. Mas pode ocorrer também uma identificação pelo oposto. Citando o texto de Danto: “Qualquer pessoa pode ser ver refletida numa obra de arte e descobrir algo sobre si mesma [...] Uma mulher libertina poderia ver sua degradação numa pintura da Virgem Maria.” [4]
Assim, a imitação do real na arte pode ser vista em seus aspectos positivos e negativos, mas não parece ser critério para classificar o que seria ou não arte.
Após o impressionismo, o Cubismo realizou o rompimento definitivo com o espaço do renascimento, “a decomposição da figura colocou em evidência o plano, como a verdade do espaço plástico moderno.” [5] A partir desse ponto, podemos falar de outra importante ruptura com a forma mais usual de se fazer arte, que acaba por dar mais material para Danto tentar desenvolver sua definição de arte. Trata-se da arte conceitual, que teve como precursor Marcel Duchamp. Em 1917, com o pseudônimo de “R. Mutt”, Duchamp enviou para o Salão da Associação de Artistas Independentes um urinol de louça, usado em sanitários masculinos, com o título de “Fonte”. Não era a primeira apropriação e deslocamento de objetos pré-fabricados para o meio de arte: em 1913, Duchamp já usara um banco de cozinha onde parafusou, no assento, uma roda de bicicleta. Mas o urinol foi o primeiro objeto deste tipo enviado para uma exposição. Com isso, Duchamp criou a arte conceitual, fazendo o mundo se perguntar sobre o que é arte.
Nos anos 50, quando os Estados Unidos passam a ser o centro cultural ocidental no lugar da França, o estadunidense Andy Warhol inaugura a pop art. No seu projeto Brillo Box, ele expõe um objeto como sendo de arte, inteiramente igual a uma caixa de sabão em pó que poderia ser comprada em qualquer supermercado. Com isso, podemos tratar de dois fenômenos de que fala Danto: o fim da arte e o princípio dos indiscerníveis.
Sobre o fim da arte, diz o próprio Danto em entrevista: “... meu pensamento é que o fim da arte consiste no surgimento na consciência da verdadeira natureza filosófica da arte” [6]. E essa natureza filosófica da arte só pode ser notada a partir da arte conceitual, com o fim dos critérios meramente visuais para discernir o que é ou o que não é arte (no caso da Brillo Box, por exemplo, não haveria diferença visual na caixa em um supermercado da caixa em exposição). Assim, a análise de uma obra de arte, para Danto, deve levar em conta algo externo à obra e, talvez, mais importante que ela própria: sua relação com o mundo (contexto cultural, histórico, social etc.). Além disso, a obra traz consigo significados incorporados dentro do mundo da própria arte (que leva em conta a teoria e a história da arte), indo além do seu mero conteúdo e meio de apresentação.
O princípio dos indiscerníveis de Leibniz diz que se duas coisas são idênticas, nenhuma característica de uma não existe na outra. Assim, se considerarmos que na identidade de um sabão em pó comum com a Brillo Box, há significados incorporados à Brillo Box que não acharemos como características no sabão em pó, eles são apenas aparentemente idênticos. As obras de arte conceituais sempre se diferirão dos meros objetos justamente por trazerem consigo algo a mais que os objetos: o conceito. Jorge Luis Borges trata deste tema em seu texto “Pierre Menard, autor do Quixote”, onde um escritor tenta e consegue reescrever de forma exatamente idêntica (com as mesmas palavras) o Dom Quixote de Cervantes, mas as diferentes condições de suas épocas distintas ao escrever acabam por mostrar que não são duas obras idênticas, mas apenas aparentemente idênticas.
Há, assim, uma diferença ontológica entre obra de arte e coisa (objeto físico), mais perceptível com as inovações da arte conceitual. As coisas simplesmente são, enquanto as obras de arte sempre trazem consigo um conteúdo simbólico, remetendo a algo fora delas mesmas. Para Danto, a obra de arte é sempre interpretada e tem conteúdo (mesmo que o conteúdo seja a sua presença na história da arte). Mas esse conteúdo interpretável da arte não necessariamente deve ser uma comparação com o real (como era o costume antes do impressionismo) ou uma tentativa de adivinhar a intenção expressiva do autor (como muito se tenta fazer até hoje em dia).
Percebemos, assim, a complexidade e dificuldade em se estabelecer uma definição definitiva e completa da arte. Mas Danto, se utilizando da própria história da arte, parece ter feito um belo trabalho filosófico. É interessante notar a aproximação da filosofia com a arte, e o poder de transformação pessoal que ambas possuem. O próprio Danto parou de produzir arte para se voltar apenas para a Filosofia, impactado pela Brillo Box, como conta nessa entrevista: “Eu parei de fazer arte por volta de 1964, quando vi a exposição de Warhol. Foi uma espécie de descoberta sobre mim mesmo ocorrida em algum momento de 1962. Eu passei a achar mais interessante dedicar-me à filosofia do que fazer arte. Eu estava trabalhando em uma gravura quando esse pensamento me ocorreu, e me lembro de dizer a mim mesmo: “se essa é a maneira como você se sente, então é melhor parar”. Assim, na verdade, eu parei e desmanchei meu estúdio e, desde aquele dia, não desenhei sequer uma linha.”. [7]
--- Notas de rodapé ---
1 - Weitz, M. 1957. O papel da teoria em estética. The Journal of Aesthetics and Art Criticism, 15.I, pp. 27-35.
2 - Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Impressionismo
3 - DANTO, A. A transfiguração do lugar-comum – uma filosofia da arte. Tradução de Vera Pereira. São Paulo: Cosacnaify, 2006. p. 43
4 - DANTO, A. A transfiguração do lugar-comum – uma filosofia da arte. Tradução de Vera Pereira. São Paulo: Cosacnaify, 2006. p. 46
5 - Fonte: http://www.vivercidades.org.br/publique222/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?infoid=1253&sid=22&tpl=printerview
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
DANTO, A. A transfiguração do lugar-comum – uma filosofia da arte. Tradução de Vera Pereira. São Paulo: Cosacnaify, 2006.
_________. O mundo da arte. Arte e Filosofia. Ouro Preto: Universidade Federal de Ouro Preto / Tessitura, 2006.
(Fabio Rocha)
2 comentários:
Danto. Coisas que ele escreveu sobre Nietzsche e Schopenhauer são também muito interessantes.
Abraços,
Não li. Obrigado pela dica, Edson. Abraços
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